“Fui uma menina que não existiu. / Nunca fui uma criança. / Isso vem de berço / minha mãe não foi criança / muito menos a minha avó.”
(p. 15)
Em Na carne absoluta, Ana Agnolo firma sua estreia literária como um acontecimento visceral — um livro que não se contenta em ser lido: ele deseja ser sentido na pele. Composto por dois blocos principais — Fêmea e Mulher —, o livro se estrutura como uma travessia do apagamento histórico à reconstrução subjetiva, tensionando os limites entre o íntimo e o coletivo, o biográfico e o ancestral, o corpo e o verbo.

Corpo, linguagem e ferida
Agnolo escreve a partir de um corpo racializado, feminizado e marcado pela desigualdade — mas seu texto não se ancora em vitimismo. Pelo contrário, emerge como grito articulado, resistência elaborada e cura em processo, ainda que nunca definitiva. Como nos versos:
“Nunca sabemos a profundidade do corte / até iniciar o processo de cura.” (p. 14)
A poética de Ana Agnolo remete ao conceito de “escrever com o corpo” — uma escrita que não se dá apenas na mente, mas na carne, na memória genética, na dor ancestral. A autora evoca não só sua linhagem feminina (mãe, avó, bisavó), mas também os efeitos psíquicos do racismo estrutural, da misoginia e da desigualdade social. A metáfora da carne — central desde o título — aparece como espaço de trauma, erotização, controle, mas também de potência e redenção.
Interseccionalidade e psicanálise poética
A obra navega entre a poesia e o ensaio psicanalítico, sem nunca perder sua força estética. Ana lida com o trauma como matéria-prima da linguagem, elaborando os efeitos do silenciamento coletivo e da desumanização:
“Nas suas tradições de preta-velha, / adorou seus santos e cultivou seus rituais. / […] Desde quando fêmea tem opinião?” (p. 21)
A noção de interseccionalidade é um eixo subterrâneo que atravessa o livro: raça, classe, gênero, espiritualidade e sexualidade se entrelaçam sem hierarquia. Não há fórmulas, há fluxos — e é justamente nesse entrelaçamento orgânico que a voz de Agnolo se consolida.
Da fêmea à mulher: o rito de individuação
A divisão da obra em duas partes — Fêmea (animal do sexo feminino) e Mulher (a carne absoluta) — é profundamente simbólica. Enquanto Fêmea concentra os poemas mais cravados na denúncia, na dor herdada e no choque com o sistema, Mulher aponta para uma virada de chave: o processo de autoconhecimento, de resignificação da história e de integração da sombra, num gesto que remete à psicanálise junguiana.
É um salto da consciência: da sobrevivente à agente da própria narrativa. Como no poema “Estreia”:
“Na vida inaugurada, meu primeiro respiro / é na Palavra. […] / Falar de si requer coragem / ao se despir das máscaras / e acessar narrativas profundas da psique.” (p. 58)
Forma e estética: entre o manifesto e a delicadeza
Agnolo domina a forma com segurança. Seus versos curtos, muitas vezes brancos, seguem um ritmo interno que reforça a intensidade emocional do conteúdo. Há pausas intencionais, rupturas sintáticas e escolhas lexicais que equilibram precisão com intensidade. A leitura é fluida, mas jamais rasa.
Além disso, há uma construção imagética recorrente de elementos orgânicos: sangue, pele, corpo, raízes, barro, sombra, sementes, veias. O campo semântico da biologia — tanto visceral quanto simbólica — enraíza o livro em uma poética do útero, da terra, do existir enquanto corpo sensível e político.
Considerações finais
Na carne absoluta é, mais do que um livro, um rito de passagem em palavras. Ana Agnolo nos entrega uma obra inaugural que já nasce madura: consciente de seu lugar, de sua voz e de seu tempo. A autora constrói uma poética da inteireza que não renega as fraturas — pelo contrário, reconhece nelas a potência de transformação.
Ao final da leitura, não se sai ileso. Porque a carne, aqui, pulsa — e nos convoca a pulsar com ela.
Ficha técnica da obra
- Título: Na carne absoluta
- Autora: Ana Agnolo
- Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP)
- Ano: 2024
- Páginas: 68
- ISBN: 978-65-6064-112-9
- Dimensões: 13 x 18 cm