ARTIGO | Um ser lésbica — Costurando Água, coluna de Sophia Bicudo

“Passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incompreendida” (2020, p. 51)

Audre Lorde

Partindo dessa convicção, expressa pela escritora lésbica afro-americana Audre Lorde, iniciei a confecção do presente texto visando articular o conceito de contrato da heterossexualidade, costurado por Monique Wittig, com ideias sobre “sexo”, “gênero” e o ser lésbica, cosidas por Judith Butler e Monique Wittig em algumas de suas produções escritas. Desse modo, busquei tecer um ser lésbica, inevitavelmente excluindo outros seres, ao alinhavar a tese de que alguns repetidos atos performativos, imersos nas relações, fazem uma lésbica, em um “jogo” entre a psique e a aparência, no contexto da heterossexualidade obrigatória, construída e mantida na linguagem e nos discursos como normal e ideal, em contraposição a sexualidades arquitetadas e sustentadas, nesses mesmos aparelhos, como desviantes, anormais, atípicas.

Essa costura, por sua vez, se deu pautada no preceito construcionista social da inexistência de “verdades” com “V” maiúsculo (absolutas, universais, naturais) e, nesse sentido, na existência de “verdades” com “v” minúsculo (particulares, relacionais e contextuais) (GERGEN & GERGEN, 2010; GUANAES-LORENZI et al., 2014). Assim, destaco que, ao escolher trazer certos autores para esse debate, exclui outros, de modo que certas “verdades” foram trazidas à luz, enquanto outras se mantiveram no escuro nesse momento. Tendo isso em vista, partamos a esse alinhavado caminhar.

Segundo Monique Wittig (2022), a sociedade ocidental está estruturada no contrato da heterossexualidade, de tal maneira que a heterossexualidade (entendida como um objeto não existente, um fetiche, uma forma ideológica inalcançável a não ser por seus efeitos) está desde sempre em todas as categorias mentais, afetando o agir e pensar das pessoas. Nessa perspectiva, como um regime político (PRECIADO, 2019), a heterossexualidade dividi e hierarquiza as pessoas através da categoria política do “sexo” (WITTIG, 2022) e do “gênero” (BUTLER, 2020). 

Todavia, o que é o “sexo”? De acordo com Judith Butler, “‘sexo’ é um constructo ideal forçosamente materializado ao longo do tempo” (2020, p. 15) e “é uma significação performaticamente ordenada (e portanto não ‘é’ pura e simplesmente)” (2022, p. 70). Logo, a categoria “sexo”, materializada e inscrita pelos e nos corpos, se faz performaticamente, sendo (re)construída nas relações (não existindo a priori) (WITTIG, 2022). Nesse sentido, os corpos são compulsoriamente sexuados, por meio de atos repetitivos e performativos, nos contextos e relações, desde o nascimento – “é uma menina!”/“é um menino!”. 

Assim, embora a corporeidade per se seja anterior a linguagem, a categoria “sexo” não o é: inexistem quaisquer exigências, por parte da natureza (ou de uma essência imaginária dos seres) de ocorrer a categorização dos animais pautada no agrupamento, aleatório, dos órgãos denominados sexuais e/ou na presença/ausência dos cromossomos X/Y. Portanto, não há um “menino”/“menina” até que, por meio da linguagem e do discurso, “eu” nomeie, construindo, um ser humano como tal. 

Nesse sentido,

“não há ‘alguém’ que possa escolher uma norma de gênero. Pelo contrário, essa citação da norma de gênero é necessária justamente para uma pessoa se qualificar como ‘alguém’, para se tornar viável como ‘alguém’, uma vez que a formação do sujeito é dependente da operação prévia da legitimação das normas do gênero

(BUTLER, J., 2020, p. 384, meus grifos)

Desse modo, a fim de tornar-se “alguém”, é necessário que o gênero seja feito; antes de ser “alguém”, se é feito através do gênero (“masculino”/“feminino”). Isso, por sua vez, se dá e se mantém emaranhado no contrato da heterossexualidade, o qual, para existir, precisa, como quaisquer contratos sociais, “que cada parte o reafirme em novos termos” (WITTIG, 2022, p. 75), de tal maneira que

“O signo, entendido como imperativo do gênero […] é menos uma atribuição do que um comando e, como tal, produz suas próprias insubordinações […] a heterossexualidade opera por meio da produção regulada de versões hiperbólicas de ‘homem’ e ‘mulher’. Em sua maior parte, são performances impostas, performances que nenhum de nós escolheu perfazer, mas que todos somos obrigados a negociar

(BUTLER, J., 2020, p. 392, meus grifos)

Nessa perspectiva, as pessoas, sexuadas e generificadas, reafirmam o contrato da heterossexualidade tendo por base ideais (inalcançáveis) do que constitui um “homem de verdade” e uma “mulher de verdade”, de forma não pautada na escolha, mas sim na imposição de certas performances arquitetadas como adequadas, certas, corretas e desejáveis para dado gênero.  

Nessa linha de raciocínio, podemos entender que o gênero

“não é nem uma verdade puramente psíquica, concebida como ‘interna’ e ‘oculta’, nem é redutível a uma aparência de superfície; pelo contrário, seu caráter flutuante deve ser qualificado como um jogo entre a psique e a aparência (em que esta última inclui o que aparece nas palavras). Além disso, esse ‘jogo’ é regulado por restrições heterossexistas, embora, por essa mesma razão, não de todo redutível a elas”

(BUTLER, J., 2020, p. 387, meus grifos)

Assim, o “gênero” não é absoluto e natural (“feminino” não é inerente a “mulher”, “masculino” não é inerente a “homem”), sendo um fazer em atos repetidos e performáticos, um “jogo” entre a psique e a aparência, regulado pelo contrato da heterossexualidade. Tendo isso em mente, poderia ser tecida análise similar em relação a um ser lésbica? Um ser lésbica envolve performar repetidamente em um “jogo” entre a psique e a aparência imerso no contrato da heterossexualidade? 

Se ser lésbica, conforme o dicionário digital Michaelis, significa ser uma “mulher que tem preferência sexual por outras mulheres” (meus grifos), ser lésbica implicaria se afirmar como “mulher”. No entanto, como Monique Wittig (2022) traz, “lésbicas não são mulheres” (p. 47) e 

“seria incorreto dizer que lésbicas se associam, fazem amor, vivem com mulheres, pois ‘mulher’ só tem significado nos sistemas heterossexuais de pensamento e nos sistemas econômicos heterossexuais” (p. 47)

Desse modo, início o percurso de costurar possíveis respostas às perguntas formuladas acima fazendo a seguinte ressalva: a definição de ser lésbica, a meu ver, precisa ser problematizada e repensada. Não apenas pautada nesse posicionamento de Monique Wittig, mas também a partir de questionamentos como: uma pessoa transgênero, classificada no nascimento como “mulher”, que tem preferência sexual por “mulheres” é lésbica?  

Tendo feito essa observação, se pressupormos que ser lésbica envolve ser (ou ter sido) denominada “mulher” e ter preferência sexual por pessoas etiquetadas, no contrato heterossexual, como “mulheres”, é possível afirmar que se faz lésbica por meio de atos performativos e repetitivos em um “jogo” entre psique e a aparência. Isso porque, para além do sentir-se lésbica, é necessário um tornar-se, nas relações, por meio da aparência (incluindo o que aparece nas palavras). Exemplos disso são o “sair do armário” e a importância que diversas pessoas lésbicas, dentre outras, dão a esse ato que é, por vezes, realizado repetidamente (no ambiente da família, nas amizades, relacionamentos românticos e sexuais, no trabalho) e de modo performático (haja vista as diversas cenas cinematográficas e relatos similares acerca do “sair do armário”), e o estar em um relacionamento lésbico, no qual se dão atos performáticos do ser lésbica ao dizer, nesse contexto, “eu te amo”, “eu te desejo”, “quer casar comigo?”. 

Esse ser lésbica, por sua vez, ocorre nas relações, pois são nessas que os seres humanos são formados (GUANAES-LORENZI et al., 2014), de tal modo que esse “jogo” está também imerso no contrato da heterossexualidade.

“Seja ‘antes’ da lei, como sexualidade múltipla, ou ‘fora’ da lei, como transgressão antinatural, esses posicionamentos [não heterossexuais e não cisgêneros] estão invariavelmente ‘dentro’ de um discurso que produz a sexualidade e depois oculta essa produção mediante a configuração de uma sexualidade corajosa e rebelde, ‘fora’ do próprio texto”

(BUTLER, 2022, p. 173, meus grifos)

Dessa maneira, embora a homossexualidade possa parecer surgir nos contextos e nas relações “como um fantasma, de forma indistinta” (WITTIG, 2022, p. 78) ou dar a impressão de nem sequer aparecer (WITTIG, 2022), a homossexualidade aparece, na linguagem e no discurso, como Outro (não-heterossexual) e, nesse sentido, anormal, desviante, queer. Logo, ainda que aparentando, por vezes, estar “fora”, a homossexualidade se situa “dentro” do discurso que produz a sexualidade e, assim, do contrato da heterossexualidade, de tal forma que a heterossexualidade se constrói e se mantém como natural, normal, desejável em contraposição a não-heterossexualidade (múltiplas outras sexualidades excluídas da primeira).  

À guisa da conclusão, vale enfatizar a brevidade do presente texto e a necessidade de haver maior aprofundamento nessa temática. Assim, visando instar-lhes, leitores-escritores, a reflexão e a produção de obras sobre gênero e sexualidade, findo a tessitura desse texto com os dizeres de Audre Lorde de que “Todos nós somos mais cegos relativamente ao que temos do que ao que não temos” (2020, p. 40) e destacando a importância de, partindo do particular, pensar, buscar, conceber “verdades” com “v” minúsculo fazendo uso da linguagem, a qual existe como “o lugar-comum em que se pode regozijar livremente e, em uma só tacada, por meio das palavras, pôr ao alcance dos outros a mesma liberdade, sem a qual não existiria sentido” (WITTIG, 2022, p. 133). 

Referências

BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. 22ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022

BUTLER, J. Corpos que importam: Os limites discursivos do “sexo”. 1ª reimpr. São Paulo: n-1 edições, 2020

GERGEN, K.J. & GERGEN, M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Editora Noos, 2010

GUANAES-LORENZI, C. et al. Construcionismo social : discurso, prática e produção de conhecimento. 1ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2014

LORDE, A. Irmã Outsider. 1ª ed. 1ª reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2020

PRECIADO, P. B. Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’. In: DE HOLLANDA, H. B. Pensamento feminista hoje: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 421-430

WITTIG, M. O pensamento hétero. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2022

Sophia Bicudo Passos da Fonseca. Autora do livro “Escritos Poetizados”, publicado pela editora Grupo Atlântico Editorial através da chancela Primeiro Capítulo, do poema “Confinamento Final” integrante da “Coletânea de Poemas Feministas Bertha Lutz”, publicado pela editora Persona, do poema “Dizeres ao Viver” integrante da coletânea “LGBTQQICAPF2K+: O Amor é gigante”, publicado pela editora Toma Aí um Poema, do poema “Protetivos além tecidos”, publicado pela editora VersiProsa na coletânea “PoesiaBR#01”, do artigo “O(s) feminino(s) na obra Identidade”, publicado no jornal Holofote, dentre outros publicados no blog da editora Toma Aí Um Poema. Atualmente cursa psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Um comentário “ARTIGO | Um ser lésbica — Costurando Água, coluna de Sophia Bicudo”

  • Ufhha!!! Um ser lésbico nada mais é do que um ser que ama , como qualquer outro que também ama. O amor não tem sexo ele até se expressa com sexo também, mas o amor não tem gênero, ele é amor.

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