ARTIGO | O “eu” e o Outro — Costurando Água Coluna de Sophia Bicudo

Partindo da concepção do psiquiatra martinicano Frantz Fanon (2020) de que “todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo” (p. 27), no presente texto emaranho concepções acerca do “eu”, do sujeito e do(s) Outro(s), objetivando costurar uma possível compreensão a respeito desses conceitos no contexto atual. Porém, sem deixar de considerar o problema da formação do Outro a partir de seu tempo, também forneço um breve panorama histórico a fim de que possa haver um entendimento ampliado sobre o Outro.   

Nesse sentido, a partir do século XVI iniciou-se a formação do eurocentrismo (ou ocidentalismo), imaginário dominante do mundo dicotomizado em moderno/colonial (metrópole/colônia) que permitiu legitimar a dominação e exploração (BERNADINO-COSTA e GROSFOGUEL, 2016; DE ARAÚJO, 2017), sustentando a concepção do Outro como inferior e atrasado em relação a Europa. Dessa maneira, a colonialidade, que consistiu na “negação da existência de outros mundos com diferentes pressuposições ontológicas e cosmológicas” (JARDIM e CAVAS, 2017, p. 85), potencializou a hierarquização e opressão pautadas na diferença, de modo que a divisão dos corpos em “homem”/“mulher”, “branco”/“não-branco”, “heterossexuais”/“não-heterossexuais” instaurou, concomitantemente, um sistema de exclusão e negação do Outro como sujeito e, nessa perspectiva, como dotado de humanidade, de tal maneira que 

“A diferenciação, ou produção da diferença, na intersecção de gênero e raça, estabelecida entre homens e mulheres, brancos e negros, e/ou indígenas, legitimava a dominação, a escravidão e a opressão na inferioridade atribuída aos Outros, reforçando ideais racistas e misóginos”

(JARDIM e CAVAS, 2017, p. 78, meus grifos) 

Assim, o eurocentrismo (imaginário dominante do mundo moderno/colonial) e, logo, a colonialidade, afirmaram, de forma repetitiva, o Outro como inferior, transformando-o, discursivamente – e materialmente – em objeto (não-sujeito), de tal modo que construíram seres humanos como Outro(s) violentamente mantendo essa construção até a atualidade.

Nesse cenário, o entendimento da escritora feminista Monique Wittig (2022) de que “mulher” é “uma formação imaginária, e não uma realidade concreta” (p. 97, meus grifos), construída na linguagem e nos discursos por meio da categoria política “sexo”, se dá respaldado na sistemática estruturação da “mulher” (não-homem) em oposição ao “homem” por meio das dicotomias natureza/cultura, passiva/ativo, fraca/forte, submissa/insubmisso, sujeito/objeto, através das quais a “mulher” é feita o Outro em relação ao “homem” e, assim, feita seu diferente.

Essa construção, no entanto, não é realizada apenas com relação a categoria “mulher” (não-homem): negros, orientais e indígenas são percebidos como não-brancos, membros da comunidade LGBTQIA+ são observados como não-heterossexuais e/ou não-cisgêneros. Dessa forma, não-homens, não-brancos, não-heterossexuais e não-cisgêneros são olhados a partir da diferença, da negação e da falta. Assim, quando Frantz Fanon (2020) afirma que “o brancos está encerrado em sua brancura […] o negro, em sua negrura” (p. 23), podemos compreender que os negros estão encerrados em sua negrura (marcados pela ausência de brancura) porque a cor de sua pele foi (e ainda o é) usada, sistematicamente, como argumento material de sua inferioridade no falacioso discurso da colonialidade a fim de legitimar a desigualdade entre brancos/não-brancos. Tendo isso em vista, vale indagar: o Outro possui um “eu”? O Outro é sujeito? Como os conceitos de “eu” e sujeito dialogam com aqueles tidos como o(s) Outro(s)?

Para refletir sobre as perguntas acima, visando respondê-las, faz-se relevante a seguinte perspectiva da filósofa norte-americana Judith Butler (2020) acerca do “eu” e do sujeito: 

“só posso dizer ‘eu’ na medida em que alguém tenha primeiramente se dirigido a mim e que essa abordagem tenha mobilizado meu lugar no discurso; paradoxalmente, a condição discursiva do reconhecimento social precede e condiciona a formação do sujeito: o reconhecimento não é conferido a um sujeito, mas é o reconhecimento que o torna sujeito”

(BUTLER, 2020, p. 373, meus grifos)

Desse modo, se o Outro ocupa um não-lugar ao ser feito a negação do sujeito, considerado universal na linguagem e no discurso hegemônico, o Outro é roubado de seu “eu”; nesse sentido, em diversos contextos, o “homem” não se dirige a “mulher”, mas a ausência do “homem”, seu contrário, o não-homem. Além disso, se, conforme a autora, “a condição discursiva do reconhecimento social precede e condiciona a formação do sujeito” (p. 373), o Outro, ao não ser reconhecido como pessoa no discurso, mas sim como a negação do sujeito, seu oposto, também não é tornado sujeito no discurso hegemônico. Apenas nas margens, fronteiras, o Outro torna-se sujeito ao ser reconhecido por discursos periféricos (por exemplo, o feminismo decolonial). 

Nessa perspectiva, diversas noções de “eu” se formam dependendo do contexto nos quais os sujeitos são reconhecidos e têm lugar no discurso. Por exemplo, o “eu” de mulheres afro-americanas é, segundo Patricia Hill Collins (2019), marcado pela família e comunidade, de tal maneira que envolve a capacidade de reconhecer a continuidade do indivíduo com sua comunidade mais ampla. Assim, o “eu”, ao invés de ser compreendido como individual, autocontido, nesse contexto e nas relações entre mulheres afro-americanas é, por vezes, percebido em relação com a coletividade. Desse modo, podemos entender que as pessoas se formam nas relações, as quais estão imersas em contextos específicos, perpassados por um tempo e uma historicidade particulares (GUANAES-LORENZI, 2014), de tal forma que podem ser percebidas como um “eu” e reconhecidas como sujeitos em alguns contextos, porém não em outros. Além disso, as maneiras como se darão tais reconhecimentos (e o próprio entendimento do “eu” e sujeito) variarão conforme os contextos e as relações.  

Tendo isso em mente, uma afirmação possível, dentre outras, se faz que o sujeito se constrói, nas relações, por meio da formação do(s) Outro(s) no não-lugar característico da situação de negação e oposição em relação a “alguém”, sendo esse classificado como um “eu”. Esse processo, por sua vez, diz respeito à estruturação das hierarquias que, ao denominar corpos, dividi-os de tal modo que sistematiza opressões pautadas na noção da diferença, principalmente por meio da dicotomia inferior/superior. Nesse sentido, o Outro é objetificado (furtado de sua humanidade) e seu “eu” é roubado em alguns contextos, enquanto, em outros (por meio de discursos contra hegemônicos), é reconhecido como sujeito e portando um “eu”. Desse modo, as pessoas são tornadas Outro(s) na linguagem e no discurso, através das relações, assim como são feitas “eu” e reconhecidas como sujeito por meio desses mesmos meios. 

Referências

BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado, v. 31, p. 15-24, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002 

BUTLER, J. Corpos que importam: Os limites discursivos do “sexo”. 1ª reimpr. São Paulo: n-1 edições, 2020

COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2019

DE ARAÚJO, Fernanda Pereira; MATTOS, Mayara Ferreira. DescoLonizar os feminismos Latino americanos e caribenhos: uma perspectiva decolonial das teorias sobre gênero, sexualidade e raça. Revista Três Pontos, v. 13, n. 1, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3387 

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. 1ª reimpr. São Paulo: Ubu Editora, 2020

GUANAES-LORENZI, C. et al. Construcionismo social : discurso, prática e produção de conhecimento. 1ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2014

JARDIM, Gabriel de Sena; CAVAS, Claudio de São Thiago. Pós-colonialismo e feminismo decolonial: caminhos para uma compreensão anti-essencialista do mundo. Ponto-e-Vírgula: Revista de Ciências Sociais, n. 22, p. 73-91, 2017. DOI:  https://doi.org/10.23925/1982-4807.2017i22p73-91

WITTIG, M. O pensamento hétero. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2022

Sophia Bicudo Passos da Fonseca. Autora do livro “Escritos Poetizados”, publicado pela editora Grupo Atlântico Editorial através da chancela Primeiro Capítulo, do poema “Confinamento Final” integrante da “Coletânea de Poemas Feministas Bertha Lutz”, publicado pela editora Persona, do poema “Dizeres ao Viver” integrante da coletânea “LGBTQQICAPF2K+: O Amor é gigante”, publicado pela editora Toma Aí um Poema, do poema “Protetivos além tecidos”, publicado pela editora VersiProsa na coletânea “PoesiaBR#01”, do artigo “O(s) feminino(s) na obra Identidade”, publicado no jornal Holofote, dentre outros publicados no blog da editora Toma Aí Um Poema. Atualmente cursa psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

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