Em América Xereca, Eugênia Uniflora descobre um continente historicamente explorado, invadido, vilipendiado. Ao deixar essa América Latina sem coberta, exposta, sua poesia relata, denuncia, escancara o ciclo de abusos que esta América – também como metáfora da mulher – tem sofrido.
No trecho de abertura, diferentes violações são apresentadas: “xeretam tua prexeca/ e injetam/ fertilizantes/ américa-xereca,/ eles fazem cheques/ com a tua xeca” e a este corpo-território, há um convite, já no trecho III, que evoca esta américa-xereca para pensar uma saída, já que na poesia de Eugênia Uniflora, a américa-xereca não é passiva: “é preciso libertar/ a terra/ estancar/ os homens/ calar a fome/ secar a sede/ é preciso/ curar os males/ é preciso estancar/ a ferida/ e abortar/ os ricos/ um bilhão de vezes”.
Nos trechos IV, V e VI, a América é personificada como a Geni que, na canção de Chico Buarque, de 1978, é a mulher que a todos serve e que de todos recebe acusações e violências. Assim como a América, Geni também é este corpo explorado mas que, no poema de Eugênia Uniflora, é um corpo que tem força e que é encorajado a lutar, como no trecho IV: “eles te enganaram/ geni/ verte tua força/ teu mantra/ teu magma/ jorra teu sangue/ tuas águas/ contra as torres altas/ fere os sonhos titãs/ recupera tuas florestas/ cobertas de asfalto”. Esta Geni aparece como uma mãe, uma América Latina poderosa que é chamada, no trecho VI, a defender sua cria e sua ancestralidade: “você é a mãe/ geni/ fera raivosa/ força destemida/ mulher brava, defende tua ancestralidade/ e devora teus abusadores”.
América Xereca não menciona o nome Brasil, tal como hoje (re)conhecemos este nosso território. Será porque, apesar de impregnados do que chamamos de brasilidade, seguimos na busca por uma memória coletiva que nos humanize? Será possível construir coletivamente uma outra forma de relação com esta nossa América-brasileira? Demasiadamente humana é a declaração de amor a esta terra-matrona mãe-madrasta que materna também as filhas e os filhos que aqui chegam, expressa no trecho XXVI: “eu sou daqui/ e sou feliz/ eu sou como você/ e eu te amo.” E nessas contradições que nos fundam, é a poesia a “língua” que à América entrega possibilidades de sobrevivência.
Flavia Ferrari. Poeta e professora da rede pública de São Paulo, Flavia Ferrari lançou, em novembro/2021, o seu primeiro livro de poemas, intitulado “Meio-Fio: Poemas de Passagem”. A obra foi editada pelo Toma Aí Um Poema, o maior podcast de leitura de poemas lusófonos. Flavia Ferrari escreve desde a adolescência, mas começou publicar seus poemas no início da pandemia, compartilhando seu trabalho nas redes sociais, participando de antologias e contribuindo com revistas literárias digitais. Desde o princípio, os seus poemas foram muito bem recebidos pelos leitores e pelos periódicos digitais. @fmferrari