Resenha: O nome dela não importa, de Sabrina Dalbelo

Capa de O nome dela não importa, de Sabrina Dalbelo, com a famosa estatueta paleolítica Mulher de Willendorf em destaque (Capista @iancoski.art). A imagem de uma figura feminina sem rosto e sem pés, de formas fecundas, antecipa simbolicamente muitos dos temas explorados no livro.

Sabrina Dalbelo, poeta gaúcha já reconhecida por obras anteriores, entrega em O nome dela não importa (2024) uma coletânea de 30 poemas (acompanhados de um texto em prosa) que orbitam em torno da maternidade e do feminino em suas múltiplas camadas​.

Trata-se de uma plaquete breve – apenas 46 páginas – porém intensa e potente em impacto. Como a própria autora resume, é um livro sobre ser “mãe, filha, neta, filha da filha; sobre tropeços, medos, acertos, convicções e equívocos; sobre a culpa que habita o ser mãe, a opção de não ser; sobre a violência de dever ser; e sobre a tristeza de deixar de ser”​ [literaturars]. Essa declaração já delineia o amplo espectro de experiências e reflexões abordadas: a maternidade como laço ancestral e ciclo geracional, suas ambivalências afetivas, e a crítica às pressões sociais que cercam o ser mulher e mãe.

Do cosmo ao cotidiano: a maternidade em múltiplas escalas

Logo nos primeiros versos, Dalbelo expande a maternidade para uma dimensão cosmogônica. Em uma poderosa imagem inaugural, lemos que “à luz, sozinha / a mulher pariu o universo / no primeiro dia” ​[Evelyn Postali] Aqui a mulher-mãe é reconduzida ao centro do mito de criação: sozinha, ela dá à luz o universo. A poesia reverte narrativas tradicionais (como a bíblica, onde a criação costuma ser ato masculino) e propõe uma nova gênese poética claramente feminista, em que o princípio gerador é feminino​ [Evelyn Postali]. Essa figura feminina primordial evoca Eva (a primeira mãe bíblica) e também Lilith, símbolos de mulheres originalmente “condenadas, julgadas, desprotegidas” pelas narrativas patriarcais, mas que nas entrelinhas dos poemas de Dalbelo reaparecem como forças matriciais “firmes, fortes – alicerce e referência”​ [Evelyn Postali] Assim, já de início o livro se afirma como uma reescritura mítica: a mãe arquetípica que cria mundos, cujo nome “não importa” pois representa todas.

Do âmbito cósmico, a poeta rapidamente nos traz à terra – mais especificamente ao chão áspero do cotidiano. Em “mulher no asfalto”, por exemplo, a voz poética (uma filha) acompanha a partida diária da mãe para o trabalho. A cena é ao mesmo tempo prosaica e lírica: “vejo tuas pernas ao longe, mãe, andando sempre reto… tu vais, eu fico no ninho… eu não perco de vista teus pés. tu indo todos os dias asfalto afora… o solo se acalma quando tu voltas para casa no fim do dia, mãe. tu e teus pés exaustos.”​ Nesses versos livres, Dalbelo captura com sensibilidade o ritual cotidiano de milhares de mães e filhos: a separação matinal e o reencontro crepuscular. A imagem da mãe que vai – de pés descalços que preferiam a grama, mas precisam trilhar o asfalto – sugere a dureza da jornada imposta (a mãe que deixa o “ninho” e se lança à luta diária, talvez pelo sustento da família). Já a filha que fica, com “o rosto colado ao asfalto”, sente a distância da mãe como um calor tremeluzente no horizonte, uma miragem que “não apaga nada, apenas pulsa”​. Essa justaposição do concreto (asfalto, pés cansados) com o poético (miragem, ninho) é característica do estilo de Dalbelo, que transita entre o cósmico e o mundano com naturalidade​. Sua linguagem rica em imagens torna o cotidiano simples carregado de significado universal, sem nunca perder de vista a materialidade da experiência feminina.

Corpo, simbolismo e ancestralidade feminina

O corpo materno e suas ressonâncias atravessam o livro como eixo simbólico. A opção de estampar a Mulher de Willendorf na capa não é casual: essa figura pré-histórica de há 30 mil anos, sem rosto e de formas rotundas, convida à reflexão sobre a representação da mulher e da fertilidade ao longo da história. Dalbelo tece seus poemas como quem costura uma linha que vem desde essa ancestral primeira mãe até a mulher contemporânea. “Ali cabe tudo: a miragem de uma mãe, sua coragem ou insensatez, o amor, o perdão, a dor, uma linhagem inteira”​ afirma [GABRIELA LEAL], sugerindo que cada poema dialoga com esse legado coletivo de mães.

A poeta explora imagens corporais fortes para ligar gerações de experiências. Em determinados versos, “sentimos o gosto do leite empedrado no seio de muitas gerações e vemos a mesma boca faminta escancarada num berro de angústia diante do bico rachado” [GABRIELA LEAL]. A imagem do leite materno secando e endurecendo no peito ao longo de gerações é de uma potência visceral: evoca o nutrir e o não nutrir, o excesso e a falta, a doação física da mãe e também a dor que atravessa o tempo (o “bico rachado” remete à experiência dolorosa e repetida da amamentação). Essa continuidade quase hereditária do sofrimento e do amor maternos é uma forma de ancestralidade poética – as vozes de mães e bebês de ontem ecoando nos de hoje. Em seguida, contrapõe a essa angústia a “ternura de uma saciedade impossível fora do aconchego materno”​[GABRIELA LEAL], ou seja, a ideia de que existe um conforto incomparável e insubstituível proporcionado pela mãe. Com isso, o texto reconhece tanto a dimensão do cuidado e colo materno (esse aconchego único) quanto a inevitável insuficiência dele diante da vida: fora do abraço da mãe, a saciedade plena é impossível, e ainda assim a mãe não pode estar presente para sempre.

Essa dualidade também aparece nos símbolos da “mãe fera” e da mãe que chora em silêncio. [GABRIELA LEAL] aponta que “a mãe fera pode ser a mesma mãe que chora no banheiro para não acordar o filho”​. Aqui, de um lado temos a mãe instintiva, protetora e possivelmente colérica – a “fera” – e de outro, a mãe exausta e vulnerável, chorando escondida. Ambas coabitam a mesma mulher. Ao reunir essas faces opostas, Dalbelo desconstrói a imagem unilateral da mãe idealizada. A maternidade em O nome dela não importa é feita de força e fragilidade, instinto e solidão, num “sentimento [que] ultrapassa os limites da linguagem”[GABRIELA LEAL]. O livro enxerga a mãe como figura multifacetada: geradora da vida e, ao mesmo tempo, marcada por cicatrizes – físicas e emocionais – que contam histórias. A palavra poética vem, assim, suturar as feridas da experiência, transformando-as em mapa, em significado. A cicatriz do parto (seja ele literal ou metafórico) torna-se um símbolo da identidade única de cada ser, um lembrete de que “no dia zero, existiu uma mãe”, evento primordial sem o qual não haveria os demais dias​[GABRIELA LEAL].

A ancestralidade materna, portanto, não é apenas genealógica, mas também simbólica e corporal. O nome dela não importa faz sentir que cada mulher carrega em si um pouco das mães que vieram antes – seja no umbigo que é marca de separação e vínculo (uma “cicatriz” fundadora)​, seja no leite derramado, nas histórias contadas ou silenciadas, nas receitas e conselhos passados adiante. Ao mesmo tempo, o livro reconhece as diversas trajetórias individuais: ele chega “até aquela mulher que nega seus óvulos sob o direito sagrado de trazer para a vida uma outra afirmação”​[GABRIELA LEAL]. Ou seja, contempla também a escolha de não ser mãe, visto aqui não como falha, mas como afirmação legítima – quase um ato de autoria sobre o próprio destino. Essa referência à mulher que recusa a maternidade reforça o caráter inclusivo e subversivo da obra, que questiona a noção de que toda mulher deve ser mãe.

Mãe e filha: culpa, perda e legado

Um dos núcleos mais emocionais desta livrete é a relação mãe-filha, explorada em seus contornos de amor, conflito e culpa. Em vários momentos, os papéis materno e filial se espelham, como se o poema fosse um diálogo transgeracional ou um espelho partido em duas vozes. Um trecho particularmente marcante apresenta uma longa lista de pedidos de perdão, que parece fluir tanto da filha quanto da mãe, num ciclo de culpa mútua e compreensão tardia: “desculpe-me o tropeço. a vigília. a dor. o desespero… o abraço. a palavra que eu disse. aquela que calei. desculpe-me o silêncio. e também os gritos… desculpe-me pela hora errada… quando te virei a cara. desculpe-me por eu não ter aprendido… por não ter insistido. eu errei como filha. eu errei como mãe. desculpe-me.”​ A ausência de letras maiúsculas e a repetição anafórica de “desculpe-me” dão a sensação de um fluxo confessional, quase uma prece laica que vai ganhando fôlego a cada item enumerado. Mães pedem perdão a filhas, filhas a mães – numa lista que inclui desde erros ínfimos (a “fronha azul e não branca”, o “tempero”, o “canal de TV” errado) até faltas existenciais (não ter compreendido, não ter insistido, ter perdido a paciência). A banalidade de certas menções contrasta com a gravidade de outras, revelando como, na vivência materna e filial, o sentimento de culpa pode permear tanto os detalhes cotidianos quanto os grandes momentos. É a culpa que “habita o ser mãe” e também o ser filha, e que Dalbelo expõe sem amarras, criticando implicitamente a idealização da mãe perfeita. Ao admitir “eu errei como filha. eu errei como mãe”​, o poema humaniza ambas as partes: nem a mãe é santa infalível, nem a filha ingrata irredimível – são duas mulheres aprendendo uma com a outra através de falhas e reconciliações.

A dor da perda também encontra espaço nesse diálogo poético. Ainda que de forma sutil, percebemos alusões à “tristeza de deixar de ser” [literaturars] – seja pela independência dos filhos que crescem e se vão (o ninho que esvazia), seja pela perda de bebês ou pela morte de mães e avós. O livro carrega uma melancolia em torno do efêmero: o “primeiro dia” em que a mulher dá à luz o universo será seguido inevitavelmente pela noite; o ciclo da maternidade implica, cedo ou tarde, em separações. Dalbelo aborda esse tema com delicadeza, sem melodrama, muitas vezes por meio de imagens e silêncios. Por exemplo, a figura da mãe sem pés presa aos lugares por onde passou​ [literaturars] – inspirada na lenda imaginada em torno da Mulher de Willendorf – pode ser lida como metáfora da mãe ancestral que foi “deixando pedaços de si” (afetos, memórias, raízes) em cada etapa da vida, enquanto tinha que seguir em frente. Há aqui uma sugestão de perda de si mesma que tantas mulheres vivenciam ao cumprirem múltiplos papéis, mas também uma afirmação de resistência: mesmo sem pés (isto é, sem reconhecimento ou sem apoio), essa mulher primeva “sabia que só tinha que continuar”[literaturars]. Da mesma forma, as mães dos poemas de Dalbelo seguem em frente apesar das ausências e lutos, carregando cicatrizes que doem, mas que também formam o mapa de quem elas são​ marcas de uma existência que, apesar de ferida, não é em vão.

Crítica social e desconstrução de narrativas

Entrelaçada às experiências íntimas, a poesia de O nome dela não importa articula uma clara crítica social. Dalbelo questiona e desconstrói as narrativas idealizadas que a sociedade impõe às mulheres, especialmente no que tange à maternidade. A começar pelo título provocativo – “o nome dela não importa” – que pode ser lido de duas maneiras críticas: primeiro, como uma afirmação de que aquela mulher arquetípica poderia ter qualquer nome, representando todas as mulheres (numa recusa à personalização da figura materna, enfatizando seu caráter coletivo e anônimo através das eras). Segundo, há um tom de ironia amarga: historicamente, não importava o nome das mulheres, pois suas identidades individuais eram apagadas sob o rótulo genérico de mãe (ou esposa, filha etc.). Os poemas exploram justamente essa tensão entre o universal e o individual. Ao dar voz poética a vivências singulares – uma filha esperando a mãe que trabalha, uma mulher decidindo não ter filhos, uma mãe esgotada escondendo seu pranto – o livro devolve humanidade e importância a cada mulher concreta por trás do arquétipo.

A desigualdade de gênero e as violências simbólicas e estruturais também são denunciadas nas entrelinhas. Quando a autora escreve sobre a violência de dever ser mãe, ela aponta o dedo para a pressão social que obriga mulheres a encaixarem-se em papéis predefinidos. Essa violência pode ser silenciosa, mas é pervasiva: está na cobrança para que a mulher realize seu “destino” maternal mesmo às custas de seus projetos pessoais; está no julgamento implacável que recai sobre aquelas que fogem à norma (a mulher que “nega seus óvulos” e opta por não ser mãe, frequentemente taxada de egoísta ou antinatural); está na falta de suporte à mãe solo de pés exaustos que percorre o asfalto diariamente​. Os versos de Dalbelo, embora líricos, carregam indignação contida diante dessas injustiças. Ora sutis, ora indignados, ora cruéis eles expõem a hipocrisia de uma sociedade que glorifica a mãe em retórica mas a abandona na prática. A cena da “mãe que chora no banheiro para não acordar o filho”​, por exemplo, fala do isolamento e da cobrança para ser forte o tempo todo – uma forma de violência simbólica que impede até o direito ao abatimento.

Estilo poético: entre o acadêmico e o sensível

O grande mérito de Sabrina Dalbelo é conseguir equilibrar uma abordagem literária refinada, até erudita em suas referências, com uma acessibilidade emotiva que toca o leitor. Os poemas são livres na forma, sem metrificação ou rima fixas, porém trabalhados com cuidado sonoro e imagético. A poeta frequentemente abdica de maiúsculas e pontuação convencional, criando um fluxo de linguagem contínuo que exige do leitor uma imersão sensorial. Há momentos quase narrativos e momentos de abstração simbólica. Essa versatilidade estilística reflete uma sensibilidade contemporânea apurada, “carregada do peso das emoções e realidades universais femininas, sem cair em clichês” [Evelyn Postali]​. De fato, um risco frequente ao tratar de maternidade e feminilidade é escorregar em idealizações ou frases feitas; Dalbelo evita isso habilmente, oferecendo imagens inusitadas e perspectivas ora ternas, ora ferozes, mas sempre autênticas.

Intertextualidades permeiam a obra de forma orgânica. Leitores mais atentos poderão notar diálogos implícitos com a literatura feminista e a poesia intimista. Quando a autora escreve sobre cicatrizes e cortes do parto, pode-se lembrar de Adrienne Rich e seu Of Woman Born, ou mesmo da prosa de Conceição Evaristo que explora a experiência mulher-mãe. No entanto, Sabrina Dalbelo constrói sua própria linguagem: ora telegráfica e direta, ora onírica. Em certos trechos, um leve humor irônico desponta – como na aparição súbita de “uma mãe… à porta do poema para lembrar: leva casaco, qualquer coisa, liga…”​. Essa cena meta-poética é encantadora e reveladora: a mãe invade até o poema da filha, preocupada se ela levou o agasalho ou se comeu algo, numa mescla de carinho e onipresença um tanto cômica. É um exemplo de como a poeta consegue inserir toques de realidade concreta (quase um microconto dentro do poema) sem quebrar a atmosfera lírica, mas antes enriquecendo-a com afeto e familiaridade.

Conclusão

Profundo, plural e corajoso, O nome dela não importa é um livro de poemas que deixa marcas no leitor – tal qual as cicatrizes-mapas de que ele próprio aborda. Sabrina Dalbelo conseguiu criar uma obra que é simultaneamente um tributo à força ancestral das mulheres e um exame crítico das feridas que elas carregam. A maternidade aqui não tem um só nome ou rosto: pode ser criação e abnegação, vínculo e perda, fardo e escolha. É um livro para ser lido com a mente e com o coração abertos – e que certamente suscita debates sobre o que é ser mulher, o que é ser mãe em nosso tempo. Em suma, Sabrina Dalbelo oferece, por meio de uma linguagem poética afiada e sensível, uma resenha poética do próprio mundo em que vivemos: um mundo parido por mulheres cujo nome importa menos do que suas histórias, suas vozes e sua indomável presença.

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