“Desejo liberdade. / Disciplina / Desejo voo. / Caminho / Desejo fuga. / Música”
(Da distração, p. 16)

🍃 Poemas-bússola para uma travessia afetiva
Luzia Costa Becker apresenta em Tratadinhos Poéticos uma coleção de pequenas epifanias líricas: textos breves, mas carregados de pensamento, sensibilidade e sopros filosóficos. A autora nomeia cada poema como se fosse uma entrada de dicionário afetivo — Da inspiração, Da alteridade, Do autoamor, Da procrastinação, Do nascimento… —, como se reorganizasse o mundo a partir da palavra.
Não à toa, a estrutura do livro lembra um manual de sentimentos em estado bruto, onde o leitor é guiado por pequenas revelações que, mais do que respostas, oferecem frestas de entendimento sobre a vida cotidiana e suas contradições.
🌀 Forma e estilo: minimalismo com densidade
Dividido em três partes — A potência dos afetos, Incontingências congruentes e Pessoas e devires —, o livro oferece uma poética que investe na concisão e na clareza, sem abrir mão da profundidade. Os poemas dialogam com a tradição da poesia reflexiva contemporânea, mas também incorporam certa musicalidade interior, como se fossem ecos de conversas íntimas entre a autora e ela mesma.
Há uma cadência ritmada na forma como Luzia escreve. Seus poemas se estruturam com silêncios e pausas que funcionam como respiros de pensamento. Em Da lucidez (p. 17), ela afirma:
“Meus olhos / viram muitas coisas. / Minha mente / registrou três vezes mais.”
Essa ideia de excesso interno, de mundo refletido para dentro, é recorrente na obra — como se cada poema fosse um convite à introspecção.
🌿 Filosofia cotidiana: entre alteridade e desejo
Luzia Costa Becker é filósofa de ofício e poeta por vocação — e essa dupla identidade transparece nitidamente em sua escrita. Os poemas não são apenas sensíveis, mas pensantes. Ela transforma conceitos abstratos como “alteridade”, “transe”, “descompasso” e “futuro” em matéria sensível e poética.
Em Da alteridade do sol de Berlim (p. 22), por exemplo, ela articula fronteira, identidade e pertencimento numa narrativa lírica sobre viver entre mundos:
“Na geografia do ser, / fronteiras imaginárias vão moldando as identidades […] / O não lugar torna-se lugar de alteridades.”
Esse trecho é uma amostra da maturidade da autora: seu olhar é cosmopolita, mas enraizado. E mesmo morando em Berlim, Luzia escreve com a memória do Brasil em cada verso — especialmente com lembranças da infância em Conceição do Mato Dentro (MG) e os afetos que dela brotam.
💬 Humor sutil e crítica delicada
Embora o tom predominante do livro seja o da contemplação, há momentos de humor sutil e ironia crítica. Poemas como Da merda da vez (p. 46) e Das certezas incertas (p. 50) brincam com a linguagem cotidiana, escancarando contradições humanas sem perder o lirismo:
“– Vai dar merda. / Ignorou com sorriso amarelo e olhar de descarga: gosto de arriscar.” (p. 46)
Essa leveza bem dosada é uma das qualidades mais encantadoras da obra: ela ri das tragédias miúdas sem desrespeitar a dor.
🧠 A poesia como reencontro de si
Em Do autoamor (p. 28), Luzia escreve:
“Um botão amarelo na roseira da janela / sussurra o beijo enamorado de mim.”
É neste verso que talvez esteja o núcleo de sua proposta poética: usar a palavra como gesto de autoacolhimento, como antídoto contra o apagamento, como forma de reencontrar-se consigo mesma nas dobras do tempo.
✅ Conclusão
Tratadinhos Poéticos é um livro que se lê devagar, como quem degusta pequenos goles de afeto e pensamento. Luzia Costa Becker escreve com elegância, sensibilidade e inteligência. Seus poemas são como penas ao vento — leves na forma, densos no significado.
Este é um livro sobre viver com atenção. Sobre escutar o que o mundo cochicha nas entrelinhas do cotidiano. Uma verdadeira ode ao pensamento sensível.
📘 Ficha técnica
- Título: Tratadinhos Poéticos
- Autora: Luzia Costa Becker
- Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP)
- Ano: 2024
- Páginas: 54
- ISBN: 978-65-6064-090-0
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
- Revisão: Luzia Costa Becker