América Xereca não se acomoda em nenhuma estética tradicional: explode padrões, rompe versos, se recusa a ser domesticado. Sua forma visual, fragmentada e pulsante, ecoa o grito de uma terra que quer “matar a morte para adubar a vida” (p. 33). A escolha da palavra “xereca” não é só política: é semente — e também explosivo. Em tempos de disputas por narrativas, Iancoski/Uniflora recusa-se a ser neutra.

Em América Xereca, Jéssica Iancoski veste o heterônimo Eugênia Uniflora para parir um poema-manifesto que opera como denúncia, evocação e re-existência diante da história colonial que sequestrou corpos e territórios da América Latina. O livro não é apenas poesia, mas cartografia visceral de um continente violentado — um grito que irrompe do útero da terra.
Este livro-poema mergulha no corpo-terra de Pindorama como metáfora insurgente. A “xereca”, no título, escandaliza à primeira vista — mas não por vulgaridade, e sim por desvelar com contundência o uso sexualizado, extrativista e consumista que as potências globais historicamente impuseram à América Latina. É nesse lugar de “vagina andrógina” e “terra hermafrodita” (p. 15) que se projeta a analogia entre território e corpo violado. A América é Geni — “geni continental”, “geni ancestral”, “geni embucetada diante do assalto” — e como ela, cuspida e estuprada, mas ainda assim fértil, viva e insurgente.
Colonialismo e deculturação: uma ferida exposta em poesia
A metáfora do corpo colonizado se articula à crítica à matriz colonial do poder, revelando como o extrativismo, a monocultura, o apagamento linguístico e a sexualização da terra estruturaram um modelo de dominação que se perpetua até hoje. “Eles xeretam tua prexeca / e injetam fertilizantes” (p. 13) — a linguagem é direta, performática, ritmada, de r.a.p. como define Marcelo Ariel no prefácio (p. 2). Trata-se de uma contra-lírica que alça o verso ao campo de batalha.
Ao subverter o uso da linguagem, Uniflora reativa também a memória indígena e o desejo de retorno ao pré-colonial: “o poema quer alforriar Pindorama / e se tornar escritor em língua nativa” (p. 11). Ao final, há versos inteiramente escritos em tupi moderno (p. 63), fazendo do livro também uma ferramenta de reapropriação linguística — uma tentativa de romper o pacto monolíngue do colonizador e gritar em voz própria, ancestral.
A América como quintal (e cloaca) do Norte global
A crítica geopolítica, embora implícita, é aguda: os “cheques” feitos com a “xeca” da América (p. 13), a comparação entre a terra-mãe e a “madrasta” que acolhe imigrantes em busca de sonho (p. 39), os “trilhões de folhas derrubadas para imprimir notas verdes” (p. 49) — tudo aponta para um modelo em que a América Latina é transformada em quintal de outras potências. Um espaço para a usina de corpos, minérios, florestas, seivas e amores que nunca serão retribuídos.
A brutalidade dessa relação é marcada ainda pela frase: “eles planejam morar na lua / e você na eterna luta” (p. 27), uma síntese brilhante do desprezo das elites tecnocapitalistas pelo planeta devastado que deixam para trás.
Decolonizar é amar-se: da denúncia ao afeto radical
Apesar da fúria, o livro também planta sementes de ternura. América Xereca não é apenas sobre a dor do estupro colonial — é também sobre a potência de renascer, resistir e amar. No trecho final, uma criança ou uma ancestral (ou ambas, fundidas) diz em língua indígena: “eu sou daqui / e sou feliz / eu sou como você / e eu te amo” (p. 63). Essa declaração, situada após tantos versos de mutilação, funciona como um antídoto: a ternura como forma radical de decolonização.
América Xereca não se acomoda em nenhuma estética tradicional: explode padrões, rompe versos, se recusa a ser domesticado. Sua forma visual, fragmentada e pulsante, ecoa o grito de uma terra que quer “matar a morte para adubar a vida” (p. 33). A escolha da palavra “xereca” não é só política: é semente — e também explosivo. Em tempos de disputas por narrativas, Iancoski/Uniflora recusa-se a ser neutra.
A América aqui deixa de ser quintal e se torna ventre. E ventre, sabemos, é onde começa a revolução.
Xxx y
diz:Quanta potência! <3