Em minha experiência em diversos seguimentos da educação em São José do Rio Preto (como professora do Curso de Letras, Formadora de professores de Educação Básica, professora de língua portuguesa e literatura e Coordenadora Pedagógica), tenho abordado incessantemente a necessidade cotidiana da percepção poética como recurso cognitivo para o desenvolvimento de uma educação humanizadora, buscando a formação de sujeitos comprometidos com a sensibilidade, o acolhimento do outro, a valorização da arte e da singularidade humana.
Ora, se se quer uma educação que valorize a subjetividade (seu reconhecimento e sua experienciação), é preciso fornecer aos professores ideias e subsídios que possam alimentar sua apreciação estética, aguçando sua abstração em busca de novas perguntas e novas hipóteses que depois possam chegar até os alunos. A poesia é uma fonte sublime de inspiração diária e um bom professor não poderá prescindir de inspirar seus alunos. Conviver com a arte literária é, ao mesmo tempo, uma obrigação e um direito dos professores. Aliás, quem tiver o direito assegurado a essa convivência desde a infância jamais irá chamá-lo de obrigação.
Nessas incursões pelo poético pratica-se um exercício de alteridade que muitos tratam como uma espécie de magia, um saber secreto: o corpo a corpo com a linguagem elevada à esfera artística, fenômeno que todos conseguem divisar mas que a maioria costuma temer, como se algo nos poetas fosse fruto de uma artimanha perigosa.
E é mesmo. Mas essa artimanha é tecida no e com o texto, valendo-se o artífice de certas nuances de percepção, certa expertise de construir um rio profundo no qual caibam diversas camadas, enganosamente homogêneas, como é enganosamente homogênea a água dos rios profundos. Todo texto verdadeiramente artístico desemboca em muitos mares de significação, por vezes até contraditórios entre si. Essa espessura de compreensão deve sempre ser considerada e há de colaborar imensamente para desenvolver um olhar treinado para a profundidade do Outro.
Por outro lado, essa abertura complexa para a imaginação criativa, que é a marca do poético, ou seja, sua capacidade de ser e não ser ao mesmo tempo, definindo com precisão aquilo que não se explica ou como que virando a realidade de ponta cabeça (para mostrar seu lado oculto) é também a única possibilidade de sobrevivência do poema como ideia inaugural numa terça-feira qualquer, sua resistência a morrer de tédio. Se assim não fosse, lá estariam os pobres poemas já “interpretados”, ou seja, asfixiados por uma explicação definitiva e monótona, ou seja, fechada.
Não. É justamente sua condição de enigma que assegura ao texto artístico sua longa vida de releituras e metamorfoses, incorporando espaços vazios que são preenchidos pela própria experiência íntima do leitor ou mesmo pela Cultura ou pela Tradição de um país ou de uma comunidade. Explico-me com a intervenção do grande poeta português Fernando Pessoa, na pele de Alberto Caeiro, o pastor de grande sabedoria:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
Após ler e reler esse ballet de palavras, vejamos como se mergulha no velho rio de significações inserido em seu leito. Em primeiro lugar, o paradoxo:
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”.
Obviamente, utilizando o senso comum, um rio famoso e importante como é o Tejo deve de ser, haja vista as cidades que margeia, sua história, seu tamanho e importância … mais belo (ou grandiloquente) que o rio de “minha aldeia”. Porém, o que o poema diz é o contrário: O Tejo não é mais belo porque não margeia minhas histórias, minhas importâncias, meu povoado. O sentido de pertencimento não está no Tejo, mas sim no pequeno e desconhecido rio, metáfora do que é familiar, autêntico, íntimo.O paradoxo de Ser e Não Ser o Tejo o mais belo rio, portanto, neste caso, não atrapalha a compreensão, como faria num outro tipo de texto, mas aguça a significação. Tal é a forma de articulação do texto literário.
Também podemos observar neste trecho uma peripécia da linguagem: trazer o significado ao pé (como diriam os portugueses) daquela pessoa que está lendo o poema, em qualquer tempo e em qualquer parte do mundo, por meio do pronome possessivo “minha”. Como esse tipo de palavra tem a capacidade de se metamorfosear de acordo com a pessoa que fala (basta você, caro leitor pronunciar o trecho “o rio que corre pela minha aldeia pensando ser você mesmo o dono deste rio e desta aldeia… ), tal estratégia é usada magistralmente para ampliar o sentido que habita todo texto. Cada leitor vê-se no papel do eu que fala no texto e vê ainda uma sombra de Fernando Pessoa, sua Cultura ou sua Tradição, já que se evoca nas estrofes subsequentes a glória das Naus Portuguesas. Tudo é sobreposto, nada é retirado.
Em 2020, com a pandemia mundial do coronavírus, fomos convidados a olhar novamente para nosso mundo interior. Com uma mudança drástica na rotina e um retorno à nossa pequena casa, voltamos a necessitar de fôlego imaginativo. A vivência de relações que estavam administradas pela ordem exterior precisou ser acomodada no pequeno espaço dos afetos domésticos, com maior convivência íntima. O tempo que escorria pelas mãos passou a pairar sobre nossas cabeças em domingos ensolarados. Mas não eram férias do mundo contemporâneo, era uma ameaça violenta nos colocando de castigo a pensar sobre nossos problemas e a sofrer perdas reais de pessoas amadas.
Tal fato aumentou a necessidade de tornar pública essa reflexão sobre o poético e suas possibilidades na formação humana e creio que o tema tenha tomado seu lugar definitivamente. Vamos falar mais sobre isso?
Profª Drª Katiuce Lopes Justino
Sandra Fontenelle
diz:Muito pertinente o artigo da professora Katiuce Justino. Entre outras coisas, escrevo prosa poética para o público infantojuvenil e percebo que há ainda nas escolas uma predileção pelos gêneros de aventura e fantasia. Não que eles não tenham o seu valor, mas a poesia é sem dúvida fundamental no enriquecimento da subjetividade