Resenha crítica — Fatias de Fome, de Aline Monteiro

“o poema pinga sangue / e o povo aplaude a primazia das palavras”
(*p. 28)

Em Fatias de Fome, Aline Monteiro entrega uma obra que não se contenta em existir na página: ela rasga a pele da linguagem para se afirmar como ato de denúncia, performance e sobrevivência. Trata-se de uma poesia que come e é comida, que grita e se cala, que sangra e desafia.

Desde o título, a poeta anuncia sua chave de leitura: fome como metáfora social, existencial, ancestral e contemporânea. Fome de comida, sim — mas também de justiça, de escuta, de espaço, de afeto, de reparação.

Fatias de Fome, de Aline Monteiro
Fatias de Fome, de Aline Monteiro

🍽️ A fome como ferida e metáfora

A obra utiliza imagens ligadas à alimentação para tensionar a relação entre opressores e oprimidos. Em – primeiro você cozinha, (p. 11), o poema já expõe uma das grandes teses do livro: quem cozinha e quem come não estão necessariamente sentados à mesma mesa. Há uma crítica feroz à divisão estrutural do trabalho, onde o privilégio de um se sustenta na invisibilidade do outro:

“tem gente que não cozinha nem limpa / mas come o que outra gente / tem nem prato pra pôr!” (*p. 11)

A comida surge como símbolo das relações de poder, desigualdade e exclusão. Em um dia, (p. 13), a autora encontra “um pedaço de alguém” no rótulo do prato comprado. A crítica é certeira: o consumo na sociedade capitalista não é neutro — ele devora corpos.


🔪 Corte, violência e linguagem

A escrita de Aline Monteiro carrega o corte como gesto estético. Em fere a alma (pp. 18-19), as palavras se tornam tesouras que “picam sonhos em pó”, mas que não conseguem triturar gente — o que tritura é a estrutura que sustenta a lâmina.

“a mão que amola a lâmina / é tão humana quanto a mãe / que alimenta pesadelos nas panelas” (*p. 19)

A construção dos poemas em versos curtos e verticais intensifica a sensação de impacto, ruído e fragmentação. É uma poesia que recusa o conforto do verso polido e oferece, em vez disso, um prato quente e indigesto de verdades cruas.


🧱 Corpo preto, dor e espetáculo

Em o poema pinga sangue (p. 28), Aline confronta diretamente o lugar que a sociedade — inclusive os espaços acadêmicos e literários — reserva às vozes negras:

“é tão bonito ver preto escrever sobre dor
é tão importante ele prevenir-se do amor” (*p. 28)

Há um incômodo real e necessário aqui: o fetiche sobre o sofrimento negro como tema literário “bem-vindo”, desde que estetizado e sem denúncia real. A poeta denuncia o racismo estrutural inclusive na recepção da sua escrita — e isso dá à obra uma camada de metalinguagem feroz.


🧠 Ironia, desilusão e força política

Há momentos de ironia cortante, como em ninguém preenche os nossos vazios (p. 32), onde a autora zomba das promessas de preenchimento simbólico com cestas básicas e palavras de “autoajuda”:

“mas já não conseguimos decidir / qual veneno / colocaremos pra dentro… / bom apetite!” (*p. 33)

No poema pra que poesia (p. 35), a dúvida se transforma em afirmação crítica:

“pra que poesia / se amanhã a bala / vai matar o preto / da tinta da caneta?” (*p. 35)

Aline não responde. Ela apenas deixa a pergunta arder na boca do leitor.


🔥 Considerações finais

Fatias de Fome é um livro que não se lê — se mastiga com dificuldade e se engole com indignação. Aline Monteiro, com sua voz firme e cortante, inaugura uma escrita que atravessa os circuitos da performance, da crítica social e da poesia contemporânea com uma fúria que não se pode domesticar.

É um livro necessário, urgente e potente. Uma obra que rompe com o conforto burguês da leitura silenciosa e convida o leitor ao incômodo — porque, como a própria autora sugere, algumas palavras só funcionam se forem gritadas de corpo inteiro.


📘 Ficha técnica

  • Título: Fatias de Fome
  • Autora: Aline Monteiro
  • Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP) — Coleção Machado Preto
  • Ano: 2024
  • Páginas: 38
  • ISBN: 978-65-85955-05-8
  • Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
  • Revisão: Aline Monteiro

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