Escrita ou falada, a linguagem é o meio de comunicação mais amplamente utilizado ao longo da história da sociedade ocidental, sendo sistematicamente empregada nos mais diversos contextos e relações. Todavia, no que constitui a linguagem? O que envolve o ato de falar?
De acordo com Corradi-Webster (2014), a linguagem é uma prática, com características performativas, que constrói a realidade; de tal forma que “a linguagem auxilia a construir o indivíduo, não a representar o que ‘realmente’ se passa com ele” (p. 76). Logo, a linguagem (um fazer) não representa a realidade e/ou os indivíduos, mas sim participa nas suas construções de modo performativo e repetitivo, projetando “feixes da realidade sobre o corpo social, marcando-o violentamente” (WITTIG, M., 2022, p. 117), de tal forma que falar é “acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (FANON, F., 2020, p. 31).
Dessa maneira, a linguagem não constitui em um conjunto de palavras neutras e desconexas do contexto sócio-histórico e cultural em que se situa, assim como o falar não envolve apenas empregar determinada sintaxe e se apossar da morfologia de uma ou mais línguas (FANON, F., 2020), estando ambos relacionados com a cultura e a construção da(s) realidade(s) e das pessoas. Isso, por sua vez, acarreta de existir, no domínio da linguagem, uma potência extraordinária (FANON, F., 2020).
Para além disso, conforme Monique Wittig (2002), a linguagem é
“o lugar-comum em que se pode regozijar livremente e, em uma só tacada, por meio das palavras, pôr ao alcance dos outros a mesma liberdade, sem a qual não existiria sentido” (p. 133)
Assim, a linguagem, “pertencente a todos nós” (WITTIG, M., 2022, p. 133), é um mecanismo pautado na liberdade, posto que são as pessoas que escolhem as palavras que irão empregar. Nesse sentido, a linguagem pode ser utilizada tanto para manter sistemas opressores e injustos, quanto para revolucioná-los através da (des)construção e (re)construção de realidades. Tendo isso em mente, a noção de neutralidade das palavras sublima-se: as palavras carregam discursos específicos marcados pelo contexto e situados nas relações.
Tomemos como exemplo, para fins de ilustração, que você caminha junto a uma pessoa na rua e, observando o ambiente, fala “olhe aquela pessoa”. Se, ao invés disso, tivesse dito “olhe aquela mulher”, os discursos eliciados teriam sido os mesmos? Provavelmente não. Isso porque, na sociedade ocidental, a palavra “mulher” evoca, normalmente, características corporais denominadas como provenientes da categoria de sexo “mulher”, assim como papéis associados ao gênero “feminino”, em razão de ser esperado, nessa sociedade, que pessoas classificadas como pertencentes ao sexo “mulher” no nascimento exerçam papéis culturalmente associados ao gênero “feminino”; enquanto que a palavra “pessoa” não carrega esse discurso.
Esse cenário hipotético e explicativo, por mais simples que possa parecer, revela algo importante: as palavras e, nesse sentido, a linguagem, estão imersas em discursos diferentes, de modo que “pessoa” e “mulher”, por exemplo, não são intercambiáveis porque implicam discursos muito diversos entre si. Logo, é importante que a escolha das palavras seja feita em conjunto com a reflexão de quais discursos estão sendo construídos e mantidos através do seu uso, tendo em vista que a linguagem e o falar implicam “assumir um mundo, uma cultura” (FANON, F., 2020, p. 52).
Assim, pautada na noção da existência de uma potência extraordinária no domínio da linguagem (FANON, F., 2020), venho aqui não apenas trazer algumas (dentre outras diversas) teorizações a respeito da linguagem e do falar, mas também, e principalmente, propor reflexões sobre ambos. Nessa perspectiva, são imprescindíveis os seguintes questionamentos: Quais discursos legitimo ao falar desse modo? O que implica usar essa palavra? Quais discursos estou sustentando ou desestruturando no meu dia-a-dia? Como posso empregar a linguagem e o falar para construir uma realidade justa, equitativa e pautada no respeito?
Leitores-escritores, findando o presente texto, insto vocês a lerem, pensarem e dialogarem sobre o que fazemos todo dia, isto é, usar a linguagem.
Referências
CORRADI-WEBSTER, C. M. Ferramentas teórico-conceituais do discurso construcionista. In: GUANAES-LORENZI, C. et al. Construcionismo social : discurso, prática e produção de conhecimento. 1ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2014
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. 1ª reimpr. São Paulo: Ubu Editora, 2020
WITTIG, M. O pensamento hétero. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2022
Sophia Bicudo Passos da Fonseca. Autora do livro “Escritos Poetizados”, publicado pela editora Grupo Atlântico Editorial através da chancela Primeiro Capítulo, do poema “Confinamento Final” integrante da “Coletânea de Poemas Feministas Bertha Lutz”, publicado pela editora Persona, do poema “Dizeres ao Viver” integrante da coletânea “LGBTQQICAPF2K+: O Amor é gigante”, publicado pela editora Toma Aí um Poema, do poema “Protetivos além tecidos”, publicado pela editora VersiProsa na coletânea “PoesiaBR#01” e do artigo “O(s) feminino(s) na obra Identidade“, publicado no jornal Holofote. Atualmente cursa psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Leticia Bicudo
diz:Fantástico texto, nos faz refletir no poder da palavra, tão marginalizado nas últimas décadas, e ressalta ainda mais detalhes na importância da linguagem, e o quanto podem interferir na nossa análise, observação e interpretação dos fatos e da Vida!!!