Inspirado pela leitura de uma postagem do poeta Fabiano Calixto, que cunhou o termo “sojificação” para descrever fenômenos do campo literário, este ensaio examina criticamente como os principais eventos literários do país vêm promovendo uma espécie de monocultura simbólica em detrimento da diversidade cultural. Nos últimos anos, eventos nacionais de grande porte – a exemplo da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) – vêm se consolidando como exemplos paradigmáticos da aplicação da lógica de mercado à cultura. Em vez de promoverem uma celebração verdadeiramente plural da produção literária brasileira, esses festivais funcionam cada vez mais como vitrines de interesses editoriais concentrados, envoltos em um progressismo de fachada meramente performativo. Nesse contexto, o conceito de “sojificação” revela-se uma metáfora especialmente útil: ele sugere que o campo literário estaria sendo convertido em uma espécie de monocultura simbólica, caracterizada por uma produção homogênea, centralizada e voltada à “exportação” de um repertório temático e estético limitado e repetitivo.

Curadoria Centralizada e Exclusão Sistêmica
A comparação com a monocultura agrícola – em que uma única espécie ocupa extensões vastas de terra, suprimindo a biodiversidade – ilustra com precisão a dinâmica literária brasileira contemporânea. Um terreno que deveria ser fértil em diversidade linguística, estética e regional vem sendo gradualmente convertido em uma lavoura simbólica dominada por poucos agentes. Nesse ambiente monocultural, vozes dissidentes acabam silenciadas ou relegadas à condição de meros ornamentos, perdendo espaço para uma produção padronizada ditada por interesses hegemônicos.
Essa homogeneização torna-se evidente nas decisões curatorias dos grandes eventos literários. Em geral, tais festivais reiteram um circuito editorial concentrado na região Sudeste, privilegiando autores ligados às grandes casas editoriais, a instituições universitárias consagradas e a redes de sociabilidade literária já estabelecidas. Por outro lado, a produção literária oriunda de outros contextos regionais e sociais – por exemplo, aquela produzida no Norte e Nordeste do país, nas periferias urbanas, nos presídios, nos saraus de poesia ou por editoras independentes – permanece frequentemente ausente dessas programações ou, quando aparece, é apresentada de forma folclorizada, funcionando apenas como uma espécie de cota simbólica de diversidade cultural.
Importante ressaltar que a crítica aqui proposta não aponta para um simples “descuido” na curadoria, mas para a existência de um projeto estrutural mais amplo: a manutenção de uma lógica de exclusão disfarçada por critérios pretensamente técnico-literários. A alegada meritocracia que justificaria as escolhas dos curadores ignora que os parâmetros de “excelência” adotados tendem a coincidir com afinidades de classe, vínculos institucionais e acesso privilegiado a círculos de prestígio. Dessa forma, reforçam-se desigualdades históricas na circulação de bens culturais, sob a aparência de julgamentos neutros de qualidade.
O problema, portanto, não reside apenas em quem é incluído nesses eventos, mas principalmente em quem permanece sistematicamente excluído dos espaços de legitimidade literária. A ausência praticamente completa de escritores das regiões Norte e Nordeste nas programações principais de festivais recentes — como se observou, por exemplo, na edição de 2025 da FLIP — é um sintoma eloquente dessa dinâmica. Não se trata de uma falha pontual de curadoria, e sim da reafirmação de um modelo concentrador que privilegia a repetição de nomes e estruturas já validados pelo mercado editorial dominante. A curadoria converte-se, assim, em um mecanismo de validação estética que funciona por meio de uma exclusão silenciosa: o novo, o arriscado e o genuinamente dissonante são preteridos em nome da manutenção de um suposto equilíbrio simbólico entre sofisticação e apelo comercial.
Paralelamente, observa-se uma inversão retórica digna de nota no debate literário. Ao mesmo tempo em que pequenas editoras e iniciativas independentes são frequentemente alvo de críticas por suposto “amadorismo” ou “baixa qualidade”, a intensa concentração de poder em torno de um punhado de grandes grupos editoriais – e de suas redes de influência – raramente é questionada publicamente com a mesma veemência. Essa indignação seletiva – muitas vezes expressa por vozes já incorporadas ao mercado literário hegemônico – dirige-se contra experiências alternativas, enquanto permanece em silêncio sobre os mecanismos institucionais de exclusão há muito consolidados.
Apesar desse cenário excludente, é fundamental enfatizar que a literatura brasileira permanece diversificada, vibrante e em constante renovação. A vitalidade do campo literário nacional está longe de se esgotar nas programações oficiais ou nos rankings de mais vendidos; ao contrário, ela frequentemente floresce nos interstícios da cena cultural. São textos e vozes que emergem da urgência da vivência, do trabalho coletivo e do atrito com a realidade concreta. Essa produção literária, embora frequentemente invisibilizada pelos grandes eventos, vem desafiando fronteiras estéticas e políticas e propondo novos modos de expressão e de ser na linguagem.
Em teoria, a função primordial dos grandes festivais literários seria ampliar horizontes: oferecer espaço de escuta para o que ainda não foi dito e promover o encontro de múltiplas vozes e perspectivas. Entretanto, ao optarem por reafirmar estruturas de visibilidade concentradas, esses eventos acabam desperdiçando a oportunidade de se constituírem como verdadeiras plataformas de mediação cultural. Em vez disso, transformam-se em vitrines do previsível, em que a inovação cede lugar à repetição de repertórios familiares e convenientes.
Em síntese, torna-se urgente repensar o papel desempenhado pelos grandes festivais literários no Brasil contemporâneo. O desafio vai além de simplesmente diversificar a programação ou adicionar novos nomes: é preciso reconfigurar os critérios pelos quais se legitima a produção literária no país. Isso requer rever a própria concepção de valor literário, deslocando o foco da consagração institucional para uma postura de escuta ativa e de compromisso com a diversidade do “país real”. Afinal, a literatura brasileira – com toda a sua riqueza e complexidade – não se acomoda em moldes rígidos nem segue roteiros previsíveis. Ela continuará a resistir e florescer, como sempre fez, nos espaços que a acolhem não como exceção tolerada, mas como parte central do panorama cultural. Não por acaso, é muitas vezes nas margens que o país escreve as suas páginas mais vivas.