“Hoje eu acordei intensa / Se é que me entende, nevrálgica / Mulher em atração plena / Fogo em estado ácido”
(*Poema “O Hoje” — p. 80)

🌊 Uma poética que flui: entre águas, corpos e fronteiras
Perpasso é mais do que um título. É um verbo em trânsito. A obra se constrói como travessia de uma mulher que escreve como quem sangra e cura — simultaneamente. A metáfora da água, recorrente ao longo dos poemas (Mar Mulher, Como olhar o mar, Eu rio), é símbolo da fluidez, da transformação e da força. Mas também da instabilidade, da dúvida, da dor.
Hevi Livre, nascida em Recife e formada em Ciências Sociais, costura em sua poesia uma experiência plural e honesta, que abarca identidade lésbica, diagnóstico de TDAH, vivência feminina e resistência cotidiana à normatividade.
🔥 Voz poética confessional e insubmissa
Os versos de Perpasso não pedem licença. Eles se impõem com intensidade e entrega emocional absoluta. A autora não se esconde. Ela declara, acusa, se expõe, se ama e se contradiz. Em poemas como Sim, Culpada (p. 72), A Falácia (p. 20) e Espelho Trincado (p. 59), a voz lírica tensiona os papéis sociais impostos às mulheres, às dissidências e às subjetividades que não cabem nos moldes.
“Sou culpada por amar sempre da forma mais voraz, mais intensa, mais verdadeira, mais entregue e mais convicta.” (*p. 72)
Essa escrita confessional, inspirada por uma ética da sinceridade, rompe com as amarras do pudor e da vergonha, fazendo da vulnerabilidade um espaço de poder.
🌀 Estrutura e temas: o íntimo como universal
Dividido em dezenas de poemas curtos, muitos com títulos-tema (Renascimento, Palavras, Vergonha, Esperança, Dialetos), o livro apresenta uma linguagem acessível, porém profundamente filosófica e simbólica. Os poemas funcionam como pequenas cápsulas de reflexão, em que o cotidiano, o desejo, a solidão e a espiritualidade se entrelaçam com fluidez.
Há, em muitos trechos, um tom de mantra ou oração subversiva — como em Duelo de Fé (pp. 48–49), onde a autora desconstrói a lógica da religiosidade tradicional:
“Eu rezo meus medos […] Rezo por egoísmo / Soberba / Presunção ao direito da excepcionalidade.” (*p. 49)
Essa ambiguidade é uma das marcas mais potentes da escrita de Hevi Livre: ela se recusa a escolher entre fé e dúvida, entre amor e raiva, entre razão e delírio — porque sabe que tudo isso é parte do “perpasso”.
✍️ Estilo: musicalidade, repetição e ritmo orgânico
A poesia de Hevi Livre não se apega a formas fixas nem métrica tradicional. Ela prefere o verso livre, o ritmo interno, a repetição deliberada. A musicalidade brota do próprio fluxo da linguagem — como no poema Meu Declamar (p. 35):
“Eu seria tua música e tua poesia / E para sempre aos teus ouvidos / Eu te cantaria.”
Esse lirismo performático sugere que os poemas foram feitos para serem ditos em voz alta — e não por acaso a obra convida o leitor a mergulhar sem volta nessa travessia. A leitura se torna quase uma experiência corporal, sensorial e espiritual.
💡 Poesia e política do afeto
Embora profundamente íntima, a poesia de Hevi Livre é também política. Em poemas como Cor de Pele (p. 55) e Vergonha (p. 54), a autora tensiona questões de raça, classe e desigualdade, dialogando com os discursos de justiça social sem perder a subjetividade.
Em Vaso (p. 44), por exemplo, a metáfora da flor que não floresce por causa da covardia é um grito silencioso contra as repressões que nos impedem de ser:
“As flores no vaso brotariam / Se nele não houvesse covardia.”
✅ Conclusão
Perpasso é uma obra de coragem. Um livro que não se contenta em ser bonito: ele quer ser verdadeiro, provocador e libertador. Hevi Livre entrega uma poesia que arde como o fogo da capa — e que se espalha como as águas que atravessam o livro do início ao fim.
Mais do que um conjunto de poemas, Perpasso é um manifesto íntimo de quem decidiu viver com intensidade e escrever com tudo o que tem. É leitura obrigatória para quem busca uma literatura que pulsa, que sente, que incomoda — e que ama sem freios.
📘 Ficha técnica
- Título: Perpasso
- Autora: Hevi Livre
- Editora: Toma Aí Um Poema – Selo Eu-i
- Ano: 2024
- Páginas: 76
- ISBN: 978-65-6064-086-3
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
- Capa e fotografia: Eric Gabriel Fernandez Albuquerque Silva
- Revisão: Hevi Livre