“Khalas, basta
Alguém finde o horror
Amamos a vida”
(p. 44)
Khalas é um grito. E também um sussurro. Um lamento e um respiro. Cecília Zugaib, em sua escrita condensada e potente, nos oferece um livro de haikais que atravessam as camadas do trauma, do deslocamento, da contemplação e do amor diante da destruição. Escrito após sua viagem a Haifa, em setembro de 2023 — pouco antes do início dos bombardeios intensivos em Gaza —, o livro nasce de uma vivência direta com a tensão, o medo e a empatia profunda com o povo palestino.

📜 Forma mínima, dor imensa
Composto por 44 haikais distribuídos em três partes não nomeadas, Khalas subverte a estrutura clássica do haicai, ao mesmo tempo em que preserva sua essência: o instante revelado com intensidade, o gesto sutil que abriga o abismo.
Zugaib não está interessada em exibir domínio técnico ou preciosismo estético. O que há aqui é urgência. É linguagem como tentativa de continuar — como uma respiração medida entre a tragédia e a beleza.
🌍 Gaza, mar, maternidade: as geografias do sofrimento e da esperança
Logo nas primeiras páginas, a poeta evoca o mar — símbolo recorrente de liberdade, fluidez e dor. Em O mar, amar (p. 9), escreve:
“Amar o mar
Amar ao mar
Amar amar
Ah, o mar!”
É a repetição que clama por sentido, mas também uma ironia sutil diante da grandiosidade que se opõe à barbárie. Em poemas como Indiferença (p. 12) — “Ninar a filha morta / Realidade em Gaza / Indiferença do mundo” —, a poeta escancara o horror com um silêncio cortante. O uso da forma breve amplifica a tensão. É poesia que não faz concessões.
🤍 Corpo, afeto, espiritualidade
Apesar do pano de fundo bélico e geopolítico, Khalas não é apenas um livro sobre guerra — é um livro sobre resistir ao desamparo. Há versos sobre meditação, fé, maternidade, autoconhecimento e amor:
“Outra desilusão
Coleciono retalhos
e costuro a minha manta” (p. 23)“Maternidade:
Felicidade e dor
Euforia e dissabor” (p. 28)
Essa dimensão do afeto que não se deixa destruir pelo mundo torna o livro mais do que um testemunho — ele é também um gesto de cura.
🔻 Khalas: basta, chega
A palavra que dá nome ao livro — Khalas, expressão árabe que significa “basta”, “acabou”, “chega” — aparece como síntese política e espiritual da obra. O último poema do livro é um apelo claro e direto, quase uma prece global:
“Khalas, basta
Alguém finde o horror
Amamos a vida” (p. 44)
Três versos que carregam toda a humanidade. É uma declaração de que a poesia, mesmo em sua forma mais contida, não renuncia à denúncia nem à esperança.
🎨 Capa e estética visual
A capa, com arte da artista palestina Malak Mattar, intensifica ainda mais o tom do livro: mulheres com olhares tensos, envoltas num tecido escuro como luto, mas com rostos multigeracionais costurados à pele — um símbolo da maternidade e da continuidade da vida. A arte conecta visualmente o conteúdo com a herança cultural e política do povo palestino.
✅ Conclusão
Khalas é um livro necessário. Pequeno no formato, gigante em impacto. Cecília Zugaib nos oferece haikais que atravessam a guerra, o luto, o amor e o silêncio — não como quem observa de longe, mas como quem sente por dentro.
Trata-se de um exemplo raro de como a forma mínima do haicai pode ser veículo para a máxima complexidade humana — e de como a poesia pode ser um modo de resistir, de lembrar, de amar mesmo entre escombros.
📘 Ficha técnica
- Título: Khalas
- Autora: Cecília Zugaib
- Arte de capa: Malak Mattar
- Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP) — Selo Eu-i
- Ano: 2024
- Páginas: 48
- ISBN: 978-65-83046-24-6
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
- Revisão: Cecília Zugaib