“O azul dormindo / O azul acordado / O azul dormindo acordado.” (p. 76)

📖 Um livro como experiência de linguagem
A primeira palavra que surge ao terminar a leitura de Estudos para um livro de poemas é: transição. Transição de formas, de tempos, de vozes, de estados. Não há uma linearidade narrativa, tampouco uma unidade temática. O que o autor propõe é uma travessia por entre os interstícios da linguagem, como quem escreve com o corpo tenso e a mente aberta ao risco da queda.
Edgard Senaha — poeta paulista, filósofo e livreiro — concebe seu livro como ensaio existencial em forma de poesia, onde cada seção parece testar um limite da palavra. Os poemas foram escritos entre 2008 e 2015, mas mantêm uma atualidade radical, justamente por se recusarem a obedecer qualquer tempo senão o da linguagem em estado de invenção.
💠 Estrutura fragmentária, mas coesa
O livro está dividido em quatro partes:
- Estudos – poemas breves e filosóficos, quase haikús existenciais;
- Composições de Fundo – texto lírico em fragmentos, ora abstrato, ora afetivo;
- Fotogramas – blocos poéticos narrativos e ensaísticos, com forte crítica da linguagem;
- Sopro: Nome – seção final onde corpo, cidade e vento se fundem numa escrita de transfiguração.
Essa divisão não é apenas formal: ela acompanha a própria transformação da voz poética, que se inicia reflexiva, ganha fôlego lírico, arrisca-se no delírio e, por fim, explode em corporalidade poética crua e precisa.
🌀 Linguagem rarefeita e filosofia poética
Há momentos de extraordinária condensação poética, como no poema O sonho do livro de água:
“Não sei de onde –
hieróglifos / mudos e loucos
que sob a existência (?)
se fundem.” (p. 15)
Senaha parece escrever para questionar não apenas o que é um poema, mas por que insistimos em escrevê-los. Sua poesia se debruça sobre a crise do sentido — e, ainda assim, resiste à desistência. Como em Acaso, onde diz:
“Enfim estou calado na paixão / E posso depurar / todo o remorso / da brisa desvairada.” (p. 16)
🎬 Poemas que pensam: ensaio, ironia, silêncio
Na seção Fotogramas, o livro se afasta do lirismo e mergulha no experimental. Há textos que soam como prosa poética, mas são mais do que isso: são pensamentos poéticos encarnados no ritmo, como em:
“O caos come o verbo comer: fiat lux. O caos come o caos e regurgita um novo mundo sem fim nem começo.” (p. 54)
Ou em um dos momentos mais cinematográficos, em que Senaha reinventa a imagem do manequim:
“Um manequim se transforma em poema pra falar no escuro mais escuro.” (p. 53)
Aqui, o autor ecoa Murilo Mendes, Haroldo de Campos e até o Beckett do “não posso continuar, vou continuar”.
🌬️ O corpo como escrita e o vento como linguagem
A parte final do livro, Sopro: Nome, é uma sequência de poemas de fôlego longo e profundamente sensoriais. A linguagem se move como vento, como ritmo interno, como corpo que deseja dizer o indizível.
“Pegar o vento pelo seu nome mais sutil / E impronunciável / Pelo nome que a boca não fala.” (p. 63)
O poema final se aproxima de uma epifania física:
“O corpo anda dentro uma chama / Estranha chama dentro […] / cavalo correndo sem cavalo.” (p. 69–70)
Essa busca por um nome que não cabe no nome, por um poema que não se fecha, é o cerne da proposta estética do livro: fazer do poema não um resultado, mas uma abertura.
✅ Conclusão
Estudos para um livro de poemas não é apenas um conjunto de textos — é um projeto poético e filosófico que tensiona os limites da linguagem. Edgard Senaha entrega uma estreia ousada e madura, que flerta com a metafísica, com o silêncio, com a prosa e com o abismo.
Um livro para ser lido devagar, ouvido por dentro, e talvez não compreendido de imediato — o que é, em si, uma das maiores virtudes da poesia verdadeira.
📘 Ficha técnica
- Título: Estudos para um livro de poemas
- Autor: Edgard Senaha
- Editora: Toma Aí Um Poema — Selo Eu-i
- Ano: 2024
- Páginas: 72
- ISBN: 978-65-6064-085-6