“É no exercício da palavra que a poesia difere o nascer do espanto.”
(*p. 13)
Com um título que evoca imagens distantes, gasosas e azuladas — As Nuvens de Netuno — Naaman Blanco entrega ao leitor uma estreia poética de rara precisão e impacto. Trata-se de um livro dividido em quatro blocos temáticos, onde cada seção parece deslocar o leitor para um novo nível de sensibilidade, memória ou crítica social. A obra se constrói como uma dança entre o íntimo e o político, o microscópico e o cósmico, a carne e o átomo.

🌌 A poesia como fenômeno atômico e espiritual
Logo nos primeiros poemas, a linguagem aparece como obsessão, vício, corpo vivo e matéria em combustão. A palavra, para Blanco, não é veículo da poesia — ela é a própria combustão poética. Em Pugna Corporis (p. 10), o corpo é o campo de batalha onde a linguagem se inscreve e onde o humano se distingue da besta por meio da palavra.
Esse gesto se radicaliza em Acheiropoieta e Nas-ser, onde escrever é um ato de expurgo, um parto da existência:
“Escrevo e expurgo de mim toda a fúria” (*p. 13)
A palavra é gozo, sangue, luto, cio, protesto. Nada é domesticado. A escrita é intensamente encarnada — muitas vezes, literalmente.
🐜 A guerra dos insetos: metáfora da existência humana
Um dos momentos mais originais da obra é o conjunto de poemas que trata dos insetos — besouros, formigas, mariposas, mosquitos — como projeções da condição humana, seres que, como nós, se lançam rumo à luz (à morte?) por impulso, vício ou ilusão.
Poemas como Os da Guerra, Mosquito, Formiga II, O Voo de Ícaro e Delírio nº1 formam um verdadeiro épico do efêmero. Em Formiga II, o eu lírico devora a formiga como Cronos devora os filhos — mas há ternura na crueldade, um desejo de absorver a memória do outro.
“Sufocada e imóvel / flutuavas / na espessa doçura / […] / enquanto eu, o teu algoz de séculos / comia aquele bolo — ah!, o bolo! — e sorria” (*p. 31)
Esse ciclo é finalizado com uma revelação trágica: todos nós, como os insetos, somos atraídos por um brilho que mata, e isso é, de certo modo, a essência da vida contemporânea.
🖤 Luto, perda e memória: poesia como elegia íntima
A segunda parte do livro — Ao Oito de Maio — é dedicada à perda do pai, Elizeu Blanco. A dor da morte aparece em sua forma mais silenciosa e sutil, como no poema Luto Doméstico (p. 43), em que a fratura de um objeto doméstico torna-se metáfora do luto:
“…porque quebrado / um objeto / é mais forte / que nunca” (*p. 44)
Blanco escreve sobre o luto não com pieguismo, mas com uma sobriedade desoladora. Em Gatinho (p. 54), um poema sobre um gato atropelado que o seguia, o autor eleva o ordinário à dimensão da tragédia. Esse é um dos méritos maiores do livro: transformar pequenas mortes em epifanias poéticas.
🌍 Crítica social e denúncia: a Terra Brasilis sangra
A terceira seção, Terra Brasilis, é de uma crueza revoltante. Aqui, o autor escreve com indignação — e, sobretudo, com coragem. O poema Negão (p. 60) denuncia com brutalidade o estupro de um cão de rua. A dor do animal vira símbolo do abandono estrutural, da violência urbana e do racismo institucionalizado.
Outros poemas, como Sistema (p. 62) e Por Engano (p. 64), falam de corpos negros, crianças assassinadas pela “bala perdida” e da impunidade que os transforma em estatística.
“A culpa foi sua / Ana Júlia / eles dirão / enquanto te transformam / em número / e estatística” (*p. 66)
Essa parte do livro é um soco no estômago — e ao mesmo tempo, um chamado à escuta. A poesia aqui é denúncia, e isso a torna urgente.
🪐 O desinteresse por Netuno
No poema que dá título à obra (Netuno, p. 67), Blanco critica o fascínio por planetas distantes enquanto milhões vivem e morrem sem dignidade na Terra. O planeta Netuno, com suas nuvens de gás metano e supostas chuvas de diamante, vira metáfora do delírio burguês, da ciência que não toca a fome, da informação que não cura feridas.
“Na favela / saber de Netuno / não desvia bala / não impede violência” (*p. 69)
É a conclusão contundente de uma obra que se divide entre a contemplação do invisível e o mergulho no abismo social.
🎯 Considerações finais
As Nuvens de Netuno é um livro que não se encaixa — transborda. Poético e político, delicado e brutal, íntimo e universal. Naaman Blanco demonstra rara maturidade estética para um autor estreante e nos apresenta uma escrita de inteligência aguda, imaginação fértil e sensibilidade cortante.
É uma obra que não passa despercebida — e que merece, sem dúvida, ocupar um lugar de destaque na poesia contemporânea brasileira.
📘 Ficha técnica
- Título: As Nuvens de Netuno
- Autor: Naaman Blanco
- Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP)
- Ano: 2024
- Páginas: 74
- ISBN: 978-65-982125-9-9
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
- Fotografias: Naaman Blanco
- Revisão: Naaman Blanco