“Essa raiva é algo que sempre esteve em mim, herdado do meu pai, talvez de antes de meu pai, talvez do meu avô, talvez de alguém antes dele, alguém que já não sabe por que odeia, mas odeia.”
(*p. 15)

🌿 Literatura como ritual de sobrevivência negra e amazônica
Em Às Margens de um Rio Negro, Francisco Ricardo faz mais do que contar histórias: ele desenha uma cartografia de afetos, violências e reexistências de corpos racializados e dissidentes na Amazônia urbana. A escrita, híbrida entre conto, memória e crônica autobiográfica, se estabelece como ferramenta de denúncia e preservação, mas também como gesto de afeto e reconexão.
O título já aponta o lugar de enunciação: não é o centro do rio, é a margem — espaço geográfico, histórico e simbólico ocupado por aqueles que, como o autor, vivem nos entrelugares da identidade brasileira: negro, nortista, bicha.
👊🏾 Contos que socam com delicadeza
A coletânea é composta por seis textos: Heranças, Ódio Cordial, Socorro, Manuella, Leviatã e Páginas em Branco. Cada um, à sua maneira, desconstrói narrativas hegemônicas sobre masculinidade, sexualidade, infância e literatura.
No texto de abertura, Heranças, Francisco narra um episódio de racismo e homofobia vivido na infância, marcando a origem de sua raiva como algo ancestral, hereditário e inextinguível. A violência simbólica e física aparece com crueza e poesia:
“Essa raiva é algo que sempre esteve em mim […] se eu não estiver com raiva eu não tô vivo.” (*p. 15)
Já em Ódio Cordial, o autor recria cenas de infância marcadas pela solidão, pelo teatro íntimo e pelo racismo performado com verniz de afeto. Ele encarna — diante do espelho — a patroa branca de sua mãe, revelando a teatralidade das relações de classe e raça no Brasil:
“Um racismo e ódio cordiais despejando afeto, comum nas mulheres brancas e ricas da idade dela.” (*p. 17)
🌱 Espiritualidade, cuidado e saberes ancestrais
Em Socorro, o ponto de virada emocional se dá com a entrada da rezadeira que dá nome ao conto. Dona Socorro, personagem ancestral e arquetípica, representa a sabedoria das mulheres negras mais velhas, o cuidado comunitário, a medicina das ervas e das palavras:
“Ser bicha preta é uma bendição.” (*p. 22)
Essa frase sintetiza o ethos do livro: transformar a dor em bênção, sem romantizar a violência — mas afirmando a possibilidade de existir com dignidade, mesmo nas frestas. É um texto que cura o leitor enquanto conta.
💇🏾♀️ Corpos dissidentes e violência estrutural
Manuella, talvez o conto mais pungente da obra, aborda o assassinato de uma travesti negra — a cabeleireira do bairro. O protagonista, ainda criança, sente medo e desprezo por Manuella, mas carrega esse afeto mal resolvido por anos. A morte dela não é apenas um fato: é uma epifania da culpa social que recai sobre os corpos trans e racializados.
“Hoje sei que eu tinha medo de me ver nela.” (*p. 30)
Ao final, quando o narrador finalmente deixa o cabelo crescer e assume sua coroa crespa, a memória de Manuella ressurge — ela vira símbolo da realeza negada e da ancestralidade trans.
🌀 Alucinação, arte e exclusão intelectual
Leviatã e Páginas em Branco deslocam o tom da prosa para o campo do devaneio e da crítica cultural. Em Leviatã, o narrador busca uma entidade indescritível na floresta, após uma experiência com LSD. A escrita flerta com o místico e o cosmológico, resgatando a potência sensorial da Amazônia como entidade viva.
Já Páginas em Branco é uma ácida crítica ao racismo institucional na literatura manauara. Em um sebo, dois homens brancos celebram a si mesmos enquanto ignoram as contribuições negras e periféricas. A cena termina com o narrador encontrando, em um dos livros, a própria assinatura — esquecida, silenciada.
“Todos apertam as mãos antes de eu enfim encontrar minha assinatura em uma página em branco.” (*p. 37)
Essa imagem é devastadora: o autor negro marginalizado por um sistema que só reconhece a branquitude como detentora do saber e da memória.
✅ Conclusão
Às Margens de um Rio Negro é uma obra rara: potente, honesta, literária e política sem ser panfletária. Francisco Ricardo nos convida a ouvir vozes que não cabem nos centros — vozes que vibram, sangram e brilham nas bordas. Ele escreve com o corpo, com a raiva, com o riso e com o amor — tudo junto e em estado bruto.
Este livro é necessário, é urgente, é belo. Uma verdadeira jóia negra da literatura contemporânea brasileira.
📘 Ficha técnica
- Título: Às Margens de um Rio Negro
- Autor: Francisco Ricardo
- Editora: Toma Aí Um Poema – Coleção Machado Preto
- Ano: 2024
- Páginas: 38
- ISBN: 978-65-982649-4-9
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
- Revisão: Francisco Ricardo