Re#7 Carlos Drummond – O Mito | Poesia Brasileira

Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX. Drummond foi um dos principais poetas da segunda geração do modernismo brasileiro, embora sua obra não se restrinja a formas e temáticas de movimentos específicos. Nasceu em Minas Gerais em 1902 e faleceu em 1987.

 

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Carlos Drummond – O Mito

 

Sequer conheço Fulana

Vejo Fulana tão curto

Fulana jamais me vê

Mas como eu amo Fulana

 

Amarei mesmo Fulana?

Ou é ilusão de sexo?

Talvez a linha do busto

Da perna, talvez o ombro

 

Amo Fulana tão forte

Amo Fulana tão dor

Que todo me despedaço

E choro, menino, choro

 

Mas Fulana vai se rindo

Vejam Fulana dançando

No esporte ele está sozinha

No bar, quão acompanhada

 

E Fulana diz mistérios

Diz marxismo, rimmel, gás

Fulana me bombardeia

No entanto sequer me vê

 

E sequer nos compreendemos

É dama de alta fidúcia

Tem latifúndios, iates

Sustenta cinco mil pobres

 

Menos eu… Que de orgulhoso

Me basto pensando nela

Pensando com unha, plasma

Fúria, gilete, desânimo

 

Amor tão disparatado

Desbaratado é que é

Nunca a sentei no meu colo

Nem vi pela fechadura

 

Mas eu sei quanto me custa

Manter esse gelo digno

Essa indiferença gaia

E não gritar: Vem, Fulana!

 

Como deixar de invadir

Sua casa de mil fechos

E sua veste arrancando

Mostrá-la depois ao povo

 

Tal como é, ou deve ser

Branca, intacta, neutra, rara

Feita de pedra translúcida

De ausência e ruivos ornatos

 

Mas como será Fulana

Digamos, no seu banheiro?

Só de pensar em seu corpo

O meu se punge… Pois sim

 

Porque preciso do corpo

Para mendigar Fulana

Rogar-lhe que pise em mim

Que me maltrate… Assim não

 

Mas Fulana será gente?

Estará somente em ópera?

Será figura de livros?

Será bicho? Saberei?

 

Não saberei? Só pegando

Pedindo: Dona, desculpe

O seu vestido esconde algo?

Tem coxas reais? Cintura?

 

Fulana às vezes existe

Demais: Até me apavora

Vou sozinho pela rua

Eis que Fulana me roça

 

Olho: Não tem mais Fulana

Povo se rindo de mim

(Na curva do seu sapato

O calcanhar rosa e puro.)

 

E eu insonte, pervagando

Em ruas de peixe e lágrima

Aos operários: A vistes?

Não, dizem os operários

 

Aos boiadeiros: A vistes?

Dizem não os boiadeiros

Acaso a vistes, doutores?

Mas eles respondem: Não!

 

Pois é possível? Pergunto

Aos jornais: Todos calados

Não sabemos se Fulana

Passou. De nada sabemos

 

E são onze horas da noite

São onze rodas de chope

Onze vezes dei a volta

De minha sede; e Fulana

 

Talvez dance no cassino

Ou, e será mais provável

Talvez beije no Leblon

Talvez se banhe na Cólquida

 

Talvez se pinte no espelho

Do táxi; talvez aplauda

Certa peça miserável

Num teatro barroco e louco

 

Talvez cruze a perna e beba

Talvez corte figurinhas

Talvez fume de piteira

Talvez ria, talvez minta

 

Esse insuportável riso

De Fulana de mil dentes

(Anúncio de dentifrício)

É faca me escavacando

 

Me ponho a correr na praia

Venha o mar! Venham cações!

Que o farol me denuncie!

Que a fortaleza me ataque!

 

Quero morrer sufocado

Quero das mortes a hedionda

Quero voltar repelido

Pela salsugem do largo

 

Já sem cabeça e sem perna

À porta do apartamento

Para feder: De propósito

Somente para Fulana

 

E Fulana apelará

Para os frascos de perfume

Abre-os todos: Mas de todos

Eu salto, e ofendo, e sujo

 

E Fulana correrá

(Nem se cobriu; vai chispando)

Talvez se atire lá do alto

Seu grito é: Socorro! E Deus

 

Mas não quero nada disso

Para que chatear Fulana?

Pancada na sua nuca

Na minha é que vai doer

 

E daí não sou criança

Fulana estuda meu rosto

Coitado: De raça branca

Tadinho: Tinha gravata

 

Já morto, me quererá?

Esconjuro se é necrófila

Fulana é vida, ama as flores

As artérias e as debêntures

 

Sei que jamais me perdoara

Matar-me para servi-la

Fulana quer homens fortes

Couraçados, invasores

 

Fulana é toda dinâmica

Tem um motor na barriga

Suas unhas são elétricas

Seus beijos refrigerados

 

Desinfetados, gravados

Em máquina multilite

Fulana, como é sadia!

Os enfermos somos nós

 

Sou eu, o poeta precário

Que fez de Fulana um mito

Nutrindo-me de Petrarca

Ronsard, Camões e Capim

 

Que a sei embebida em leite

Carne, tomate, ginástica

E lhe colo metafísicas

Enigmas, causas primeiras

 

Mas, se tentasse construir

Outra Fulana que não

Essa de burguês sorriso

E de tão burro esplendor?

 

Mudo-lhe o nome; recorto-lhe

Um traje de transparência

Já perde a carência humana

E bato-a; de tirar sangue

 

E lhe dou todas as faces

De meu sonho que especula

E abolimos a cidade

Já sem peso e nitidez

 

E vadeamos a ciência

Mar de hipóteses. A Lua

Fica sendo nosso esquema

De um território mais justo

 

E colocamos os dados

De um mundo sem classes e imposto

E nesse mundo instalamos

Os nossos irmãos vingados

 

E nessa fase gloriosa

De contradições extintas

Eu e Fulana, abrasados

Queremos… Que mais queremos?

 

E digo a Fulana: Amiga

Afinal nos compreendemos

Já não sofro, já não brilhas

Mas somos a mesma coisa

 

(Uma coisa tão diversa

Da que pensava que fôssemos.)

 

 

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Poema: O Mito

Poeta: Carlos Drummond

Voz: Sabrina Julia


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