
Todo ano é a mesma novela: sai a lista dos finalistas dos grandes prêmios literários e a gente já sente aquele cheirinho de mofo com essência de patchouli da Tok&Stok. Sempre os mesmos nomes, sempre os mesmos elogios tipo “prosa elegante”, “texto maduro”, “narrativa equilibrada”. Tradução? Escreveu bonito, limpinho, sem levantar a voz nem virar mesa. Se ferveu demais, tá fora. Se lacrou de menos, tá dentro.
Os prêmios literários no Brasil são tipo aquele jantar de família onde todo mundo finge que tá tudo bem, mesmo quando tem racista, homofóbico e editor presente. E você não pode falar alto, não pode cutucar ferida, não pode colocar a real na mesa, senão “perde o tom” — e, junto com o tom, perde a chance de ser premiado.
Livro que fala de genocídio, de corpo preto, de favela, de suor e esgoto? No máximo entra como cota de diversidade. Agora, livro em que uma mulher branca da Vila Madalena decide largar o emprego em marketing pra vender cerâmica artesanal em Itacaré e “reencontrar o sentido da vida com apenas 12 peças de roupa de linho”? Esse é finalista. Esse é considerado urgente. Esse tem “mínimos afetos com máxima potência narrativa”.
E aí o júri vem todo trabalhado na frase de impacto: “não é que o outro livro não seja bom, é que esse aqui é mais técnico”. Técnico, no caso, é o novo jeito de dizer “esse aqui não me deixa desconfortável na cadeira da livraria onde eu lancho salada de grão-de-bico com molho de tahine e azeite trufado”.
Vamos ser sinceros: prêmio literário no Brasil adora uma polêmica — desde que ela esteja vestida de gala, falando baixo e sorrindo pra foto. A tal da literatura de confronto precisa ser, no fundo, bem comportada. Se a sua revolta for bonitinha, diagramada com serifas elegantes e sem gíria… talvez você tenha uma chance. Agora, se você escreve com sangue, com gíria, com gorda que desafia o patriarcado, com travesti pelada, com a mãe solteira que abortou — aí esquece, gata. Teu lugar é no sarau, no zine, no stories — não no palco com carpete e luz branca.
Porque o júri literário é uma entidade mística. Mora entre a estante e o brunch. Se alimenta de textos com “construção refinada” e “poética da sutileza”. Qualquer coisa fora disso é considerada “excessiva”. Palavras demais, dor demais, política demais, negro demais, lésbica demais, verdade demais. Eles querem só o suficiente pra parecer moderno, mas sem tirar ninguém do sério.
E olha que engraçado: os prêmios sempre vêm com o discurso da renovação, da diversidade, da valorização das vozes plurais. Mas quando chega na hora de premiar, quem leva? Quem já tem três prêmios, três viagens para a Europa e um assessor de imprensa que escreve melhor do que metade dos jurados. É o rolê do “escreve bem, mas tem cara de confraria literária”. Porque o Brasil, minha filha, ainda é governado pelas panelas. Inclusive as de literatura.
Não tô dizendo que não tem livro bom ganhando prêmio. Tô dizendo que tem muito livro necessário sendo ignorado porque dá trabalho de ler e muito mais trabalho de digerir. E quem tá sentado julgando, muitas vezes, não quer ter esse tipo de indigestão. Eles querem livros que façam pensar — mas não tanto. Querem sentir algo — mas sem amassar o blazer ou suar a suvaca. Querem algo que o mundinho deles entenda, sem desafios.
Então se você quer ganhar um prêmio literário no Brasil, aqui vai a receita: escreve bonito, fala de dor com doçura, bota um pouco de angústia existencial, um trauma elegante e, pelo amor da estatueta, não enche o saco do júri com política, ativismo ou texto que pareça ter sido escrito com fome. Fome assusta.
Mas se você quer fazer literatura de verdade — aquela que sangra, que grita, que incomoda —, vem pro corre com a gente… A literatura pode tudo. Menos incomodar o júri.
Jéssica Iancoski
Jéssica Iancoski (1996) é editora, poeta e articuladora cultural. Presidente da Associação Privada Sem Fins Lucrativos Toma Aí Um Poema, a primeira editora no modelo ONG do Brasil, já faturou mais de R$ 1 milhão no mercado editorial, consolidando-se como referência em inovação e impacto social. Graduada em Letras (UFPR) e Psicologia (PUCPR), com especializações em Gestão de Projetos e Negócios, é autora de mais de 10 livros, incluindo A pele da pitanga (finalista do Prêmio Jabuti). Reconhecida por sua atuação inclusiva, publicou mais de 2 mil autores e produziu mais de 1.500 poemas audiovisuais, alcançando 1 milhão de acessos. Jéssica também recebeu prêmios como o Candango de Literatura (GDF) e Sérgio Mamberti (MinC) e, atualmente, é curadora do Prêmio Literário da Cidade de Curitiba.