Tempestades também movem a criação.
Não sei se acontece com você, mas alguns trechos de livros só revelam a própria força quando a vida aperta. Um dos meus favoritos é este:
— Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
— E isso importa?
— Mais do que a própria guerra.

Hemingway escreveu isso no livro Adeus às Armas. E posso te contar? Sempre que ele me volta à cabeça, é porque alguém — de verdade — esteve ali comigo, nas trincheiras.
Nos dias tranquilos, de céu limpo e boas notícias, é fácil ter aliados. As pessoas se somam à nossa volta, como se fossem atraídas pela luz da bonança. As taças tilintam, os risos preenchem os espaços, tudo parece fácil. Mas a verdadeira pergunta só se impõe quando as coisas desandam, quando o cenário nubla e algumas batalhas diárias deixam o ar pesado.
É tentador confiar rápido, principalmente quando estamos perdidos e tudo o que você deseja é alguém que te ofereça abrigo. Mas nem todo ombro é seguro. Às vezes, sem perceber, a gente entrega nossos mapas a quem nunca soube atravessar os próprios desertos. Às vezes, o lobo veste a lã mais macia. Disfarça-se de calmaria, quando por dentro carrega tempestades.
E então, o filtro natural da vida acontece. Você se vê ali, com um balão inflado na garganta, uma braçada de urtigas apertadas contra o peito, uma pressão infiltrada nas vértebras. Aos poucos, as risadas vão silenciando, as companhias se dissolvem como névoa sob o sol quente, as costas se viram. E de tantas pessoas que antes se acotovelavam ao seu redor, muitas desaparecem. Você se encontra no deserto, sedenta, sem ninguém por perto para lhe oferecer uma gota d’água.
Então a vida dobra uma esquina e alguém se coloca ao seu lado no front — de cabeça erguida, peito aberto, sólida como quem diz, não vou recuar, estou aqui com você.
Esse apoio nem sempre vem na forma de grandes gestos. Às vezes, ele é um ouvido ou um convite para respirar outro ar, um conselho firme, apenas alguém que segura sua mão.
E às vezes, sem alarde, uma pessoa que você não espera, chega e desarma a bomba por você — alguém que não apenas te oferece abrigo na tempestade, mas que vai até o olho do furacão e desativa o perigo na raiz. Alguém que não só está ao seu lado, mas que se lança à frente quando é preciso, para que você respire por um instante sem o peso iminente da explosão. Dali para frente, vocês já não são mais dois caminhantes solitários, mas uma mesma força repartida em dois corpos, movendo-se como se cada passo de um fosse o impulso do outro.
No fim, o que realmente importa não é vencer a guerra. É quem escolheu lutar com você.
Envie este texto para quem já esteve com você nas trincheiras.
Pra continuar escrevendo
A crônica acima é uma homenagem a quem está ou esteve ao meu lado no front — aqueles que enfrentam a tormenta comigo e seguram minha mão mesmo quando o chão ameaça faltar. Escrevo para reconhecer esses gestos de coragem e afeto, que muitas vezes se revelam não apenas nas grandes tempestades, mas também nas brechas de cada dia. Que este texto seja um abrigo e um agradecimento a vocês, que permanecem, firme, mesmo quando os ventos sopram forte.
Por isso, deixo aqui um convite de escrita: olhe ao redor, pense em quem esteve contigo na travessia.
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Exercício — As presenças no front
Nota importante:
➡️ Não leia o Passo 3 antes de concluir o Passo 1 e 2.
Confie no processo. 🙂
1. Deixe fluir
Sem se preocupar com forma ou estilo, apenas escreva. Deixe as palavras correrem livres. Escolha um episódio difícil da sua vida, recente ou distante, e escreva sobre ele de dentro da trincheira, não como um narrador distante, mas como quem está lá, sentindo o peso da situação.
2. Descreva
Na sua primeira escrita, tente responder para si mesmo:
- Quem estava ao seu lado?
- Como se portava essa pessoa?
- O que ela fez?
- Quais ações dela fizeram diferença?
- Como você reconheceu, no meio do caos, quem era de verdade para ficar?
Lembre-se: não precisa ser um texto longo. Algumas linhas sinceras já bastam.
3. Segundo tratamento — Hora de lapidar o texto
Depois de escrever, volte ao texto com um olhar mais atento. Reflita sobre o que você pode aprofundar:
- Releia e sinta se há camadas a mais para incluir:
Um cheiro, um ruído de fundo, um gesto silencioso, uma palavra que ficou atravessada, a textura do ambiente ou até um silêncio que disse mais do que palavras. - Revise também as metáforas. Evite as imagens muito comuns e busque algo mais autêntico para o que você viveu. Por exemplo:
- Em vez de escrever “carregar um fardo” [clichê], talvez: “parecia levar um labirinto inteiro nas costas”.
- Em vez de escrever “coração disparou”, talvez: “o peito batia como quem pede socorro contra as costelas”.
- Fuja das expressões genéricas como “montanha-russa de emoções”, “fundo do poço”, “abraçar o mundo”.
- Priorize imagens sensoriais e singulares: sons abafados, texturas, ritmos do corpo, a paisagem à sua volta, o que suas mãos faziam no momento.
A ideia aqui é transformar a vivência crua da primeira escrita em uma narrativa mais rica, com profundidade emocional e visual.
Que a palavra nos mantenha juntos, mesmo nas distâncias.
O que estou lendo.
Terminei Meu Nome era Eileen, da Ottessa Moshfegh. Confesso que, apesar de algumas questões no fluxo do texto — e aqui arrisco dizer que talvez sejam problemas da tradução — preciso urgentemente conversar com alguém que também tenha lido esse livro. Sério. Há camadas e camadas escondidas nas entrelinhas, coisas que não se revelam na primeira leitura. Estou com aquela inquietação boa (?) de quem sente que o livro continua reverberando mesmo depois de fechado.
Em seguida, comecei Sede, da autora Amélie Nothomb. É um livro muito bem escrito, isso não há dúvidas. Mas, apesar da qualidade da escrita, ele não me pegou. Acabei abandonando a leitura. Não por demérito da obra, pelo contrário — reconheço sua força —, mas enquanto leitora, eu sou movida à tensão. Gosto de livros que me deixem à beira da cadeira, e Sede segue um fluxo mais contemplativo. Talvez, em outro momento, eu volte a ele.
Ao terminar a escrita dessa news vou seguir para Rosa Montero. Ela nunca me decepciona.
Por (entre)linhas dessa semana fica por aqui. Eu espero que você encontre as suas trincheiras seguras, e que nunca lhe falte companhia para os dias de batalha — nem para as comemorações depois dela. A gente se lê na próxima.
Mabelly Venson é uma matemática que se apaixonou pela escrita. É parteira de livros na Editora Toma Aí Um Poema e autora de “Tudo Que Queima”, “apenas mãe” e “GELO”, obras que focam nas complexidades do ser mulher.