
Sério mesmo que, em pleno 2025, a gente ainda tá deixando meia dúzia de gente com sobrenome composto de família, pele branca e apartamento na Vila Madalena ou no Leblon decidir o que é “boa literatura”? Porque vamos combinar: o que chamam de qualidade muitas vezes é só costume. Costume de ler sempre os mesmos, de premiar sempre os mesmos, de elogiar sempre os mesmos — e, principalmente, de não se sentir ameaçado por nenhum texto que grite mais alto que a taça de vinho biodinâmico do coquetel da Flip.
“Boa literatura”, dizem eles, é aquela que tem apuro formal, domínio técnico, leveza filosófica e densidade narrativa. Traduzindo: é o livro que você pode citar no jantar da editora sem parecer emocionado. Aquele que fala de dor sem cheiro, de miséria sem sujeira, de violência sem sangue. É o romance que um curador branco de Pinheiros lê com ar pensativo, entre uma colherada de burrata e um áudio da mãe dizendo que o porteiro deixou o pacote da Amazon.
No Rio, o conceito de boa literatura tem outro tempero. Lá, é o livro escrito por um homem branco que joga frescobol e chora em silêncio, relembrando a infância no Jardim Botânico. Tem que ter angústia bem escrita, dor existencial com vista pro mar e, claro, uma mulher que fuma em silêncio enquanto serve um café passado na hora. O que não pode é incomodar demais, nem sair demais da estética das colunas culturais do jornal. No máximo, pode ter uma travesti — mas ela morre ou vira metáfora.
E quem escreve diferente? Quem usa gíria, fala da quebrada, escreve sem pedir desculpa, sem enfeitar, sem justificar sua existência com citação de europeu morto? Ah, esse aí “tem potencial”. Esse é “forte, mas precisa amadurecer”. Esse não tá pronto. Mas pronto pra quê, meu Deus? Pra caber numa antologia cheia de ternos bege e prosa fria?
Vamos deixar claro: não existe um conselho de anciãos da sabedoria literária que desce do Pão de Açúcar ou da escadaria do Bixiga com tablets de mármore dizendo o que é literatura e o que é só texto. Existe é um mercado. Um circuito. Um clubinho bem nutrido, com boas conexões, que decide o que vai pra frente e o que vai pro fundo da pilha. E não é à toa que quem decide quase nunca se parece com quem escreve com urgência.
A pergunta não devia ser “quem decide o que é boa literatura?”, mas sim: por que a gente ainda acha que precisa da validação desse comitê informal de elite perfumada? Porque boa literatura, de verdade, é a que treme na mão de quem lê. É a que não pede licença pra existir. É a que não cabe no molde de ninguém — nem do júri do Jabuti, nem do resenhista de sapatênis, nem da agente literária que fala “me manda algo mais universal”.
Chega de bajular o paladar literário de quem acha que escrever bem é falar bonito. A gente quer literatura que respire, que trema, que sangre, que sue. A gente quer livro que incomode a digestão leve do brunch de domingo e que provoque azia em quem achava que já tinha lido tudo. Porque, no fundo, o que eles chamam de boa literatura… muitas vezes é só a literatura que não desafia o lugar deles no topo da mesa.