
Nos últimos tempos, surgiram discursos nas redes sociais que colocam as pequenas editoras como vilãs do mercado editorial, acusando-as de “trapacear” autores estreantes ou “se aproveitar” de seus sonhos. É um discurso ruidoso, inflamado, que circula rápido — principalmente quando parte de pessoas com grande audiência. Mas é também um discurso irresponsável, injusto e, sobretudo, desonesto. Não porque pequenas editoras estejam acima de críticas — nenhuma estrutura está. Mas porque atacar generalizadamente o trabalho de quem mantém a literatura de pé neste país é ignorar completamente como o ecossistema do livro realmente funciona fora do eixo privilegiado.
É também ceder à lógica de engajamento pelo escândalo, que transforma conflitos em capital simbólico. Conforme argumenta Byung-Chul Han, as redes sociais operam por “descargas afetivas instantâneas”, privilegiando o choque à razão, a reação à reflexão. Críticas legítimas, quando moldadas para viralizar, deixam de ser convite ao diálogo e tornam-se combustível para campanhas de deslegitimação. Num ambiente algorítmico que recompensa indignação, a verdade importa menos que a performance.
Se há um tipo de estrutura que realmente aposta em autores desconhecidos, que publica obras sem garantia de retorno comercial, que banca riscos estéticos e temáticos, que distribui livros em feiras pequenas, escolas públicas, espaços periféricos — são as editoras independentes. São elas que acreditam em poetas sem agente, em vozes sem capital social, em textos que dificilmente passariam pelas comissões editoriais engessadas dos grandes grupos. E fazem isso sem os privilégios da distribuição nacional, sem acesso às vitrines das megastores, sem verba pública garantida. Quando alguém diz que essas editoras “enganam autores”, o que está sendo dito, no fundo, é que só o que vem das grandes casas editoriais é legítimo. E isso, sim, é um apagamento violento.
É também a reafirmação de uma lógica neoliberal, que, como alerta Wendy Brown, transforma toda relação em cálculo de ganho ou perda — desconsiderando o trabalho coletivo, o risco partilhado, e os modos alternativos de produção. Ao negar a legitimidade das pequenas editoras por não seguirem o modelo das grandes, naturaliza-se um mercado excludente onde apenas quem já tem pode publicar, e só o que promete retorno imediato é considerado válido.
Boa parte das pequenas editoras no Brasil funciona com equipes mínimas, muitas vezes de apenas duas ou três pessoas. Algumas operam literalmente da sala de casa, outras vendem seus próprios livros nas ruas. Ainda assim, essas editoras cuidam de todas as etapas do processo editorial: revisão, capa, preparação, diagramação, impressão, lançamento, divulgação, emissão de nota fiscal, prestação de contas, entrega e elaboração de relatórios. Trabalham muito mais do que deveriam, por muito menos do que merecem. E fazem isso por acreditarem que a literatura é uma tecnologia de transformação social, por saberem o que é ser um autor estreante sem acolhimento, por entenderem que, se não forem elas a fazer, ninguém fará.
A crítica é válida quando é feita com responsabilidade, quando aponta caminhos, quando vem de quem também está arriscando. O que se vê com frequência, no entanto, é a demonização da margem por quem pouco entende da lógica do mercado — ou pior, por quem se beneficia da sua manutenção desigual. É fácil criticar quem não entrega uma tiragem em 30 dias quando se publica por uma editora com equipe completa, gráfica própria, logística estruturada e assessoria permanente. É fácil chamar de “trapaça” o modelo de pré-venda quando não se compreende o custo real de imprimir um livro num país em que o papel encareceu mais de 150% nos últimos cinco anos. É fácil gritar quando não se está na linha de frente. Difícil é sustentar um catálogo com autores negros, indígenas, LGBTQIA+, periféricos, e fazer isso com pouca ou nenhuma verba institucional. Difícil é operar com menos de 1% da estrutura que as grandes casas possuem e, mesmo assim, continuar publicando.
Em um ambiente digital que, como descreve Daniel Trilling, favorece campanhas de linchamento simbólico ao estilo de “inimigos do dia”, qualquer estrutura vulnerável se torna alvo fácil de execração. A pequena editora, nesse cenário, não é apenas um modelo alternativo de negócio — é também um corpo frágil num campo hostil, onde quem berra mais alto recebe mais cliques, e onde até a literatura se torna instrumento de disputa performática.
As pequenas editoras não são perfeitas. Cometem erros. Precisam, sim, melhorar processos. Mas classificá-las como exploradoras por tentarem viabilizar seus projetos é ignorar que, muitas vezes, elas são o único porto possível para quem está começando. Atacar essas estruturas é atacar a literatura que mais precisa de espaço. É confundir erro com má-fé. É reforçar a lógica excludente que mantém o livro nas mãos de poucos.
Quem acredita, de fato, em uma literatura acessível, viva, múltipla e socialmente relevante precisa apoiar, fortalecer e proteger o trabalho das pequenas editoras. Porque são elas que, com pouquíssimos meios, têm feito o impossível: publicar o Brasil real. E isso, em tempos de algoritmos famintos por escândalo, é talvez o gesto mais radical de todos.
Jéssica Iancoski
Jéssica Iancoski (1996) é editora, poeta e articuladora cultural. Presidente da Associação Privada Sem Fins Lucrativos Toma Aí Um Poema, a primeira editora no modelo ONG do Brasil, já faturou mais de R$ 1 milhão no mercado editorial, consolidando-se como referência em inovação e impacto social. Graduada em Letras (UFPR) e Psicologia (PUCPR), com especializações em Gestão de Projetos e Negócios, é autora de mais de 10 livros, incluindo A pele da pitanga (finalista do Prêmio Jabuti). Reconhecida por sua atuação inclusiva, publicou mais de 2 mil autores e produziu mais de 1.500 poemas audiovisuais, alcançando 1 milhão de acessos. Jéssica também recebeu prêmios como o Candango de Literatura (GDF) e Sérgio Mamberti (MinC) e, atualmente, é curadora do Prêmio Literário da Cidade de Curitiba.