Durante muito tempo, nos fizeram acreditar que literatura de verdade é aquela que “exige do leitor”. Que o bom livro é o difícil. Que só vale a pena se exigir uma chave hermética para ser lido. E com isso, criaram uma hierarquia onde o prazer da leitura simples virou pecado — e o acesso a “””literatura de qualidade”””, um privilégio.
Mas o que ninguém diz é que essa ideia de “qualidade literária” não é neutra. É uma construção social, histórica e elitista. Uma construção que escolheu o que entra no cânone, quem pode ser chamado de escritor, quais gêneros valem o selo da crítica, quais estéticas são levadas a sério.
E mais do que isso: é uma construção que serve para manter os mesmos nomes nos mesmos lugares. E, quando algo salta e é incorporado, é numa medida de contenção. Quantas pessoas autoras escreviam muito melhor, antes de entrarem em uma grande editora? Mesmo que me peçam, não darei os nomes. O texto não quer ser sobre isso.
Nos ensinaram a valorizar o experimentalismo europeu, mas a desprezar a crônica escrita por mulheres. Nos ensinaram a citar Guimarães Rosa com reverência, mas a rir de quem lê romance de CEO ou poesia de Instagram. Nos ensinaram que literatura boa precisa ser complexa — mas nunca explicaram por que a complexidade que interessa é sempre a que vem da academia e da elite.
O problema não é com a literatura difícil. É com a exclusão disfarçada de exigência estética. Para mim, nada disso importa. Importa mais manter leitores e acreditar no caminho deles. Porque quando a gente coloca o prazer da leitura de volta no centro, estamos dizendo que todos os leitores importam. Que quem lê (seja o que for) está construindo, sim, um repertório. Não é a dificuldade do texto que define sua importância, mas o modo como ele ressoa com quem o lê.

📌 O que é “literatura de qualidade”, afinal?
Se for pra ser honesta: é um critério escorregadio. Porque o que define qualidade literária muda com o tempo, com o lugar, com quem lê. A própria história da literatura é feita de autores que foram ignorados em vida por não se encaixarem nesse padrão — e depois, redescobertos, celebrados, canonizados.
📌 A velha crítica e a nova leitura
Enquanto parte da crítica ainda se apega aos mesmos critérios do século XIX, o mundo mudou. Milhares de pessoas estão lendo e escrevendo fora do radar da crítica institucional — nos slams, nas redes, nas feiras de rua, nas pequenas editoras, nos clubes de leitura entre amigas, nas páginas dos livros que chegam por financiamento coletivo.
E esses leitores e leitoras não querem um selo de aprovação. Querem encontrar sentido, afeto, espelho, fúria e beleza nas palavras. E estão encontrando — muitas vezes, em livros que a crítica tradicional nem sabe que existem.
O mercado, claro, também reage. Quando um grupo de críticos separa títulos entre “alta literatura” e “literatura de entretenimento”, não está fazendo apenas uma curadoria. Está reforçando um abismo. Está dizendo, nas entrelinhas: “isso aqui é sério; aquilo ali é só passatempo.” Está dizendo, ainda hoje, que o best-seller não é literatura de verdade. Que a escrita popular é uma ameaça. Que a linguagem acessível é sinônimo de mediocridade.
Mas não é.
📌 O que nos emociona também é literatura
A pergunta que me interessa não é “esse livro é bom?”
É: pra quem ele foi escrito? Quem se vê nesse texto? Quem sente que sua vida ganhou nome, ritmo e página ali?
Não há valor mais literário do que esse: a capacidade de tocar, de expandir, de abrir uma fresta.
Seja com um poema de Rupi Kaur ou um romance de Geovani Martins.
Seja com um conto de Monique Malcher ou um slam de Roberta Estrela D’Alva.
Seja com um romance queer latino-americano escrito sob pseudônimo de planta.
Não é o tom, nem o vocabulário, nem o formato que determina o valor.
É o que a palavra faz no mundo.
E isso, nem a crítica mais sofisticada consegue medir sozinha.
📌 Conclusão: quem define o que é literatura?
Se há algo que aprendi como escritora, editora e leitora é que o que a gente chama de “boa literatura” muitas vezes é só o que sobreviveu ao filtro do privilégio.
Mas tem muita coisa fora do radar que não só sobrevive — floresce.
Por isso, prefiro outra régua: a da emoção. A do impacto. A da liberdade de linguagem. A do risco. A da coragem de escrever sobre o que nos atravessa — com beleza, com raiva, com humor, com fúria.
Literatura não é uma escada. É um terreno. Um chão cheio de caminhos, de vozes, de pegadas que se cruzam.
Quem insiste em apontar quem está “acima” e quem está “abaixo”, na verdade, só mostra que tem medo de caminhar junto.
E cá entre nós: não há nada mais literário do que se perder por esses caminhos.
Jéssica Iancoski
Jéssica Iancoski (1996) é editora, poeta e articuladora cultural. Presidente da Associação Privada Sem Fins Lucrativos Toma Aí Um Poema, a primeira editora no modelo ONG do Brasil, já faturou mais de R$ 1 milhão no mercado editorial, consolidando-se como referência em inovação e impacto social. Graduada em Letras (UFPR) e Psicologia (PUCPR), com especializações em Gestão de Projetos e Negócios, é autora de mais de 10 livros, incluindo A pele da pitanga (finalista do Prêmio Jabuti). Reconhecida por sua atuação inclusiva, publicou mais de 2 mil autores e produziu mais de 1.500 poemas audiovisuais, alcançando 1 milhão de acessos. Jéssica também recebeu prêmios como o Candango de Literatura (GDF) e Sérgio Mamberti (MinC) e, atualmente, é curadora do Prêmio Literário da Cidade de Curitiba.