Por Ná Silva [1]

Quando Lara Peter [2], aos quatorze anos, escreveu Oi, Tangerina, não estava apenas registrando palavras, mas criando um universo através delas. Como mãe e artista, acompanhei de perto esse processo, observando a transformação de uma estudante comum da escola pública em uma autora que dá forma à sua própria escrita. Lara não estava inserida em programas avançados de literatura, nem em grupos de escrita especial. Ela era apenas mais uma aluna do 9º ano, com suas dúvidas, suas inquietações e seus sonhos. E, no entanto, foi na escola pública que ela encontrou o espaço para explorar sua criatividade.
Como Rubem Alves (2015) nos ensina, a escola pública, muitas vezes vista como um local de escassez é, na verdade, um território fértil para a liberdade de expressão e para a descoberta do próprio potencial criativo.
A escola pública como espaço de criação
A escola pública é, muitas vezes, tratada como um lugar onde faltam recursos, mas, na realidade, é o berço da criação para muitos estudantes. A ideia de escrevivência, termo cunhado por Conceição Evaristo, propõe que a escrita é inseparável da vida, uma fusão entre experiência e narrativa. Para Evaristo (2005), a escrevivência é uma escrita de si e dos seus, atravessada pela memória, pelo cotidiano e pela ancestralidade — um grito que nasce das margens e atravessa o centro.
Essa concepção se aproxima da ideia de escrita subjetiva, em que a experiência individual é transformada em arte. Como aponta Ana Maria Maia (2017), a escrevivência é o processo em que a escrita surge das vivências pessoais e da subjetividade de quem escreve. A escrita, assim, torna-se um lugar de resistência e de reinvenção.
Foi assim que Lara, com sua história e seu olhar, encontrou uma maneira de se expressar. A escola pública oferece, por vezes, o único espaço no qual os alunos podem realmente se reconhecer como autores, mesmo quando a realidade os desafia. Não se trata apenas de ensino formal, mas de um espaço onde as vozes dos estudantes podem ser ouvidas, reconhecidas e valorizadas.
A escrevivência, enquanto conceito e prática nos leva a uma reflexão sobre a importância da experiência pessoal e de como a subjetividade se torna uma ferramenta poderosa de resistência e criação. Ainda, conforme Ana Maria Maia (2017), a escrita não é um ato solitário, mas sim um diálogo constante entre o sujeito e o mundo ao seu redor. A escola pública, ao abraçar esse processo, possibilita que os alunos descubram que podem usar a palavra como forma de transformação — não apenas para expressar o que sentem, mas para reconstruir e reinventar a si mesmos.
Foi esse espaço de liberdade que Lara se encontrou. Ali, ela foi encorajada a escrever, não apenas por uma exigência pedagógica, mas porque a escola representava um lugar onde a criação era possível.
A literatura como potência na educação pública
Em Oi, Tangerina, a tangerina deixa de ser apenas uma fruta para se tornar um símbolo poderoso de identidade e descoberta. A autora não escreveu apenas sobre uma fruta; ela escreveu sobre a sua própria infância, sobre as relações com os outros e, principalmente, sobre a capacidade da literatura de construir mundos.
Segundo Rubem Alves (2015), a educação não deve ser um ato de dominação ou repetição, mas um processo de liberação. Nesse sentido, a escola pública não deve se limitar a apenas ensinar conteúdos, mas permitir que o aluno se reconheça como autor de sua própria vida e história.
A educação pública, quando voltada para a liberdade e o afeto, se torna um espaço onde os alunos podem desenvolver sua criatividade e se tornar protagonistas de sua própria narrativa. O livro de Lara é uma prova disso: uma obra que, ao mesmo tempo, reflete a realidade de uma estudante e a transforma em uma experiência universal, capaz de tocar e inspirar outros.
Apesar das dificuldades enfrentadas pela educação pública, este espaço tem se mostrado, cada vez mais, um berço de talentos e potencialidades. A obra é um exemplo de como a escola pública pode se tornar um ambiente onde a criatividade floresce, onde os alunos são desafiados a ir além das limitações e se expressar através da arte. Como afirma Paulo Freire (2000), a educação deve ser um processo de libertação, e a escola deve ser um lugar onde os alunos têm a oportunidade de se reconhecer como sujeitos autônomos, capazes de transformar o mundo.
O posfácio e a validação institucional
Oi, Tangerina não é apenas um livro escrito por uma aluna da escola pública; ele é um testemunho de como a educação, quando bem direcionada, pode libertar e empoderar. A diretora da escola, ao escrever o posfácio do livro, validou o trabalho, mostrando como a escola pública pode ser um espaço de criação e valorização de seus alunos.
Esta presença não é apenas simbólica, mas revela o compromisso da escola em valorizar a criatividade e o potencial dos seus alunos, respeitando suas subjetividades e histórias. A escola, portanto, é muito mais que um simples espaço de ensino; ela é um local onde as vozes dos estudantes devem ser ouvidas e valorizadas.
Considerações finais
Este livro, mais que uma obra literária, é uma celebração da escola pública como um espaço de libertação, onde os jovens têm o direito de se expressar, de serem ouvidos e de construir suas próprias narrativas. Não se trata apenas de ensinar a ler e escrever, mas de incentivar a descoberta e a afirmação da própria voz, do próprio olhar sobre o mundo. O que Lara nos apresenta em Oi, Tangerina é o produto de uma educação que não se limita a transmitir conteúdo, mas que permite que cada aluno descubra o seu lugar, a sua história e o seu potencial criativo. A escola pública é, de fato, um lugar onde o potencial humano pode florescer, mesmo diante das dificuldades estruturais e financeiras. A verdadeira riqueza está no espaço que ela oferece para que os alunos possam, como Lara, criar e se expressar.
A poeta adolescente, com sua escrita simples, porém cheia de significado, nos mostra que a escola pública pode ser, sim, um solo fértil para o florescimento de talentos e para a transformação das realidades. Ela nos faz refletir sobre como uma educação mais humanizada e inclusiva pode gerar frutos imensos, que ultrapassam as fronteiras da sala de aula e se espalham para o mundo. E, ao compartilhar sua história com o mundo, Lara nos lembra que, ao lado da educação formal, existe uma educação subjetiva — aquela que se faz através da vivência, do olhar atento sobre o cotidiano e, principalmente, da valorização do sujeito e de suas experiências. Oi, Tangerina é uma prova disso.
Assim, o que nasce na escrita de Lara Peter se espalha para outros, como as tangerinas que brotam na terra fértil de nossas experiências. A escola pública, portanto, não é apenas um local de aprendizado acadêmico, mas também um terreno onde se cultivam os sonhos, as histórias e as identidades. Ela é o terreno onde cada um pode plantar sua semente e ver seu fruto crescer, não só no papel, mas na vida.
Referências Bibliográficas
ALVES, Rubem. A alegria de ensinar. São Paulo: Editora Vozes, 2015.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
MAIA, Ana Maria. Escrevivência e outras experiências literárias: a arte de escrever a partir do corpo e da subjetividade. São Paulo: Editora Cortez, 2017.
PETER, Lara. Oi, tangerina. Curitiba: Editora Donizela, 2025.
[1] Ná Silva é artista visual, ilustradora e poeta. Sua arte transita entre o traço contínuo, o pontilhismo e a pintura, explorando a expressão feminina e a força do corpo. Ilustrou livros, participou de exposições e organizou as antologias Sangue Sobre (t)ela (2023) e Antologia Suja (2025). Acredita na arte como linguagem visceral, que transcende limites e transforma.
[2] Lara Peter é autora do livro Oi, Tangerina, publicado em 2025 pela Editora Donizela. Aos quatorze anos, Lara começou sua jornada literária com este livro, que reflete suas experiências de vida, suas relações interpessoais e o poder da escrita como meio de expressão. Estudante da escola pública, encontrou no ambiente escolar o espaço para explorar sua criatividade e dar voz às suas histórias, buscando transformar sua realidade por meio da literatura. Oi, Tangerina é um testemunho da força da escrita jovem e da importância da educação como plataforma para o florescimento de talentos.
RAFAEL WIEDMER SCHUSTER
diz:Muito interessante. Fiquei com vontade de adquirir um exemplar para ler. Onde consigo um?
Toma Aí Um Poema
diz:Oi, Rafael! Tudo bem?
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