O que faz uma editora se apaixonar (ou não) pelo seu trabalho

Quem me lê por aqui já deve saber que sou escritora, mas a função que ocupa minha maior dedicação é coordenação editorial. Isso significa que, antes de qualquer livro ser publicado pela editora, ele passa primeiro pela minha leitura.

E olha… tem coisa que a gente percebe de longe.

Nas nossas chamadas de publicação, chegam centenas de originais. É um trabalho que exige tempo, dedicação e, principalmente, sensibilidade e cuidado.

Recebemos originais com textos de prosa e poesia que estão prontos, ótimos, surpreendentes. Não vou negar: alguns desses eu queria ter escrito.

Outros, ainda pedem um pequeno toque de edição para desabrocharem ainda mais. E também alguns que ainda precisam amadurecer para serem publicados.

Até aí, tudo faz parte do processo natural da publicação. O que não faz — e que, infelizmente, tem se tornado recorrente — é encontrar no meio desses originais, textos que não foram escritos por uma pessoa. Nem por um cachorro, aedes aegypti ou água de rio.

É isso mesmo. Desculpem a franqueza, mas enquanto escritora que passa dias estudando se um verso deve começar com letra maiúscula ou minúscula, só posso pensar que quem submete um livro escrito pela inteligência artificial, com certeza que na escola, era aquela pessoa que pedia pros colegas colocarem seu nome no trabalho, ou no mínimo, quem só segurava a cartolina.

O maior susto que levei na última chamada foi um livro inteiro, inteirinho, escrito por IA. E o detalhe poético? O e-mail da pessoa tinha o nome dela seguido de escritor@gmail.com

Escritor de quê, meu bem? Escritor de IA? Escritor de Prompt? Escritor Copia-e-Cola Ltda.? Escritor Segura-Cartolina Inc.?

Porque escrever não é apertar comando e enter. Escrever não é gerar texto. Escrever é outra coisa. É trabalho de linguagem. É pesquisa, invenção, erro, dúvida, tratamento. E é exatamente isso que a IA não sabe fazer.

E como sei que é Inteligência Artificial?

Porque a IA é uma autora que eu conheço, e bem. Enquanto editora tenho o dever moral e profissional de estudar as formas como ela escreve justamente para não cair na armadilha de achar que isso é literatura.

E, pra ser justa, fiz questão de checar. Peguei o poema que abria aquele original e pedi para a IA escrever algo com o mesmo tema. O resultado? Praticamente idêntico.

Como reconhecemos um texto feito por IA?

Acredite, dá pra perceber bem rápido. Abaixo listo alguns sinais bem comuns:

  • Poemas sempre rimados e conclusivos, muitas vezes com rimas pobres, forçadas, óbvias.
  • Uma certa fórmula pronta: versos recheados de expressões vazias como “brilho da esperança”“asas dos sonhos”“caminho do amor”“voz da alma”.
  • Uma prosa sem invenção, que mais parece uma redação escolar do quinto ano: previsível, plana, sem corpo, sem tom, sem ritmo ou vida, e ainda por cima, com moral da história.
  • Falta de singularidade. Um texto sem cheiro, sem temperatura, sem pegada. Um qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa.

Pra não dizer que é implicância minha, toma aí dois exemplos, um poema e um conto escritos pela IA.


Propósito

um pássaro pousa
no galho mais fino —
não testa se aguenta,
não mede, não calcula.

pousa.

porque não é o galho
que sustenta o voo.
é o voo
que sustenta o pássaro.

e assim também
a vida —
às vezes a gente só precisa
acreditar no que se apoia
pra não cair.

O Grilo no Armário de Panelas

No silêncio da cozinha, quando as luzes se apagavam e a casa mergulhava na penumbra, um grilo se tornava o maestro da noite. Escondido dentro do armário de panelas, ele batucava seu canto nas paredes metálicas, que amplificavam seu som como uma orquestra.

Era um lugar curioso para um grilo escolher como palco, mas ali ele se sentia seguro, protegido entre as tampas e frigideiras. E, naquele espaço apertado, sua música ganhava eco e alma.

Mas certa noite, ao ouvir passos se aproximando, o grilo silenciou, esperando que a dona da casa abrisse a porta do armário. Quando a luz invadiu o espaço e o olhar curioso surgiu, o grilo fez uma última tentativa: um trinado suave, quase tímido.

Surpresa, a dona sorriu. E naquele instante, entre panelas e silêncio, uma amizade silenciosa se formou — feita de música e pequenos encontros na cozinha.

Esses dois exemplos entregam exatamente o esperado, do jeito óbvio, sem nenhuma dobra, sem nenhum desvio, sem nenhum frescor.

Literatura não é atalho. Não é apertar um botão. Escritor de verdade escreve seu próprio texto.

Escrever é ofício. É estar disposto a estudar, a errar, a revisar, a duvidar de cada palavra, a escolher uma e não outra. Não é só juntar palavras em frases — é fazer da linguagem um lugar possível de existir.

Porque quem lê sente. E quem escreve sabe: a diferença entre um texto qualquer e um bom livro está na invenção, na entrega, na presença. É sobre sentir quem está ali, atrás do texto.

Escritor de prompt não é escritor. No máximo, operador de máquina. Porque, sinto muito mas, escrever exige coração.


Como enviar um original para uma editora

Já que falamos sobre Chamadas de Publicações, aproveito pra deixar aqui algumas dicas pra quem quer submeter um original — e, quem sabe, conquistar o coração de quem tá do outro lado da curadoria antes mesmo da leitura do livro.

1. Pesquise
Antes de tudo, pesquise editoras que estejam alinhadas com seus valores e com o tipo de literatura que você escreve. Se você escreve de forma progressista, por exemplo, não faz muito sentido enviar seu livro para uma editora conservadora ou que não publique literatura independente, autoral, experimental. Isso vale também para os gêneros, estéticas, propostas.

2. Seja claro no assunto do e-mail.
Ajuda muito quando no assunto do e-mail já vem escrito algo como: “Submissão de original – poesia” ou “Chamada de Publicações – romance”. Parece simples, mas isso já dá ao curador uma pista do que vai encontrar ali e o deixa com expectativas.

3. Escreva algo legal no corpo do e-mail.
Parece detalhe, mas não é. E eu juro: já quis publicar uma autora antes mesmo de abrir o anexo, só porque ela escreveu no final do e-mail: “Um abraço desde a Paraíba.” Olha, ganhou meu coração na hora.

4. Se apresente!
Conte quem você é, o que te atravessa, de onde você escreve, o que te move. Isso não significa escrever sua minibio pro livro, que geralmente é mais curta, mas contar pra editora quem é você, sua trajetória, seus afetos, seus rolês literários (ou não-literários). Tudo isso faz com que a editora já tenha uma ideia de quem você é e do que te move e, assim, consiga também entender melhor o seu livro no mundo.

5. Não seja prepotente.
Frases como “exijo total controle sobre a publicação” , “é proibida qualquer divulgação do texto sem minha autorização” ou “esse original já tem registro de direitos autorais e qualquer apropriação indevida, crime previsto em lei”. Curadoria não é roubo de ideias, é um processo de leitura e seleção cuidadosa para entender se seu livro faz sentido dentro do catálogo da editora. Se você começa duvidando do trabalho da editora ou se coloca acima da colaboração, talvez esse não seja o lugar certo para seu livro.

6. Apresente seu original.
Fale um pouco sobre ele. Que livro é esse? É poesia, conto, romance, crônica, zine, um híbrido? Sobre o que ele fala? De onde ele parte? Qual a proposta? Tem ilustrações? Uma apresentação honesta, afetiva, direta, faz toda a diferença.

7. Leia o edital e siga as orientações.
Sim, isso mostra organização e respeito. Envie tudo o que for solicitado, da forma como foi solicitado de uma única vez.

8. Não tente burlar as regras.
Acredite, a gente percebe. Se a editora pede um arquivo de 100 páginas, não adianta enviar um arquivo com fonte 8, sem margem, apertado até a alma. Já viu algum livro publicado assim? Pois é. Provavelmente esse original não passará na curadoria, porque está fora dos parâmetros solicitados.

9. Tem dúvida? Pergunta.
Ninguém morde. Perguntar é sempre melhor do que presumir ou fazer errado.

10. Aguarde o prazo.
Se o edital informa que o retorno sai até tal data, não precisa ficar ansioso mandando e-mails a cada seis horas. Confia no processo.

Pra fechar…

Andei meio sumidinha nas últimas semanas — por motivos de que a vida é uma danadinha e não tá nem aí pra nossa programação. Mas cá estou, de volta, na esperança de que eu você continue escrevendo com o que tem de mais seu: sua voz, seu corpo, sua história, seu coração.

Que você siga inventando, errando, acertando, tropeçando nas palavras, levantando com um texto novo e, principalmente, encontrando jeitos bonitos de fazer sua escrita chegar no mundo. Seja livro, zine, plaquete, postagem ou bilhete de amor.

Porque escrever, no fim das contas, é isso: um jeito da gente não caber só dentro de si.

Nos vemos logo, com mais conversas, mais dicas e, claro, mais literatura. 💌

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O que faz uma editora se apaixonar (ou não) pelo seu trabalho por Mabelly Venson

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