
Chame-o de Ismael.
O narrador de Moby Dick é um homem propício à melancolia, talvez um professor cansado da sala de aula, como se suspeita, e que, angustiado pelos contornos da vida, decide se aventurar em alto-mar. Numa dessas, alista-se como marinheiro num barco baleeiro. Na época, década de 1840, as baleias cachalotes — aquelas testudas — eram caçadas principalmente por causa do tesouro encapsulado dentro de seus crânios: a estrutura de suas cabeçorras guarda um óleo refinado, que, por cerca de três séculos, foi utilizado em lamparinas para iluminação de vias urbanas na era pré-eletricidade.
Essa substância oleosa, cor-de-esperma, chamada espermacete (ao que se deve o nome dos cachalotes em inglês, sperm whale), levava embarcações e mais embarcações a enfrentar a imensidão e os perigos marítimos. E é nesse pano de fundo que o autor norte-americano Herman Melville, de Nova York, nascido em 1819 e falecido em 1891, criou uma das maiores histórias da Literatura de seu país, e mundial.
Há quem defenda que Moby Dick, publicado em 1851, é o Grande Romance Americano — e há quem traga, para disputar esse título com ele, A Leste do Paraíso, de John Steinbeck (1902-1968), publicado 101 anos depois, e Amada, de 1987, da escritora Toni Morrison (1931-2019). No cinema e na TV, Moby Dick já foi adaptado mais de quinze vezes. As mais consagradas versões são a de 1956, protagonizada por Gregory Peck, um ator celebrado na época devido ao sucesso de O Sol é para Todos (baseado em outro clássico norte-americano); e uma minissérie mais recente, com Ethan Hawke, fiel nas aventuras e nas relações, digamos, políticas dentro do navio Pequod. Essa embarcação quacre irá servir aos propósitos de Ahab, o capitão que devia estar trabalhando, mas que só quer mesmo achar uma baleia em específico: a que o aleijou.
Um dos problemas herdados por Moby Dick, porém, é que nenhuma de suas adaptações fez realmente jus a uma de suas características mais importantes, para não dizer emblemáticas. Não uma — mas duas. A primeira é o teor cômico, a graça, a carga enérgica das piadas e dos trocadilhos. O relato de Ismael, o narrador, produz trechos hilários, e a diversidade cultural entre os personagens enriquece as camadas da narrativa. Em meio a homens sem educação formal, que se identificam com o trabalho braçal, Ismael é um intelectual de sensibilidade apurada, mas irreverente. E não é lá um marinheiro dos bons: ele pode ser às vezes um péssimo companheiro de bordo, cochila no cesto da gávea quando devia estar de vigília, está quase sempre despencando do convés no oceano, e por vezes se embanana na caçada às baleias, atrapalhando toda a equipe nos botes. Enquanto os outros estão preocupados com uma tempestade que se aproxima, ele contempla a beleza das cortinas de água, sempre entregue a ruminações filosóficas de que ninguém mais ali compartilha.
A outra característica que acaba ficando fora dos roteiros e das telas é o aspecto enciclopédico com que Melville, através do narrador, organiza alguns capítulos da história. Nem todas as seções são narrativas; Ismael faz todo um exercício, muitas vezes irônico, para nos deixar a par da rotina de trabalho em alto-mar. Acaba-se por sair da leitura com um grau inédito de conhecimento técnico sobre navegação e sobre as baleias, não importa quão úteis ou inúteis essas informações serão para sua vida. Para a evolução do livro e para se vivenciar seu ápice, elas são fundamentais — e fomentam a sensação extasiante de estar num dos botes durante as cenas de caça.
Entretanto, basta a história dar uma guinada que a narração muito em breve muda de tom, para nos ensinar um pouco mais sobre certas particularidades: 1) a corda especial, resistente, usada para capturar baleias (“A ostaxa”); 2) a retirada do espermacete e o aproveitamento do restante do corpo do animal, incluindo a maneira com que a gordura era extraída e derretida (há capítulos como “O corte”, sobre o talhe do animal morto para a remoção de sua gordura [1]; “A baleia como um prato” [2], sobre seu consumo culinário; e trechos dedicados à anatomia, como “A cabeça do Cachalote – um exame comparativo”, “O aríete” e “A cauda”[3]); 3) a forma como as baleias eram retratadas artisticamente em pinturas e outras representações quando o grande público ainda só as conhecia através de relatos dos marinheiros, sem nunca tê-las visto (capítulos como “Das representações monstruosas de baleias”, “Das representações menos errôneas de baleias e representações genuínas das cenas da pesca baleeira” e “Das baleias pintadas a óleo; gravadas em dentes; madeira; metal; pedra; montanha; estrelas”) ; 4) os tipos de baleias e os tipos de cetáceos que não são baleias; tudo isso, e um bocadíssimo mais, contado pelas mãos de um narrador que oscila, no balanço do mar, entre o acadêmico e o familiar, o coloquial e o cerimonioso — brincalhão e filosófico ao mesmo tempo; comediante e trágico num só voleio.
A propósito, não só a maior parte das adaptações falhou em ressaltar o tom cômico e esse minucioso esgotamento explicativo, professoral, que Ismael dá acerca das coisas (suspeita-se que ele possa ter sido professor, lembra?), como também um número incontável de leituras e análises do livro, em todas as mídias — podcasts, guias de leitura, tanto os reconhecidos quanto os menos oficiais, blogs literários pessoais ou institucionais, vídeos no YouTube, e mesmo livros sobre o livro — varrem para escanteio a voz que amarra toda essa gama de personagens e elementos notáveis através da linguagem exemplar, da estética experimental absurdamente astuta, transparente como cristal, ainda que densa, da estruturação inovadora (habilidades que, futuramente, nosso Machado de Assis também iria demonstrar em Memórias Póstumas de Brás Cubas, quebrando por aqui, e de outras e novas formas e camadas, as tendências da narrativa escrita brasileira e ocidental como um todo).
Essa força central da história de Moby Dick, de consciência especulativa e mística, obliterada de uma enxurrada de debates sobre o livro, é o próprio narrador: Ismael, quase sempre mencionado en passant nas discussões, como um simples veículo transportando boa parte da grande história da monomania de quem é tido como o protagonista, quase invariavelmente: o capitão Ahab. Não sem alguma razão, é claro, recai sempre sobre Ahab a coroa de personagem principal: este homem alienado pelo desejo de vingança (Moby Dick lhe arrancou a perna no passado, e a perna-de-pau que ficou no lugar acabou lhe custando, também, depois de outro acidente, a potência fálica); este homem enlouquecido pela imensa tristeza e frustração de aprender de repente que, contra tudo o que lhe foi ensinado por sua cultura até ali, ele (leia-se todos nós, a humanidade) somos pequeninos demais e bastante insignificantes diante da imensidão das lógicas da natureza. Se tivermos de ser esmagados — ou de termos uma perna amputada pela mordedura de um cachalote albino, a grande baleia branca que dá título ao livro —, esmagados seremos, e isso só é frustrante e triste do ângulo humano, porque da perspectiva da Terra, e da vastidão de forças agentes e coexistentes em nosso globo, somos só uma pelinha no canto da unha.
A maneira como esse grande romance se constrói se deve à figura não-só-personagem, mas à figura-organizadora-de-ideias, à figura-construtora de atmosfera, espírito e ânimo, à figura que fala de seus incômodos, enlevos, anseios, empolgações excessivas (ele é um homem de humanas em meio a uma tropa de marujos sem tendência à reflexão, e é claro que isso levará a cenas hilárias em que Ismael dá uma boa viajada ou filosofada profunda, e os marujos poderiam olhar para ele com a cara de “o que deu nesse cara?”), mas, quando fala de si, fala com suavidade, ciente, no momento em que está, de que o mundo externo é o que lhe interessa, do quão grande esse mundo externo é, e do quanto ele, como narrador, e seu leitor-alvo, como receptáculo, precisam entender da grandeza do mundo, em seu funcionalismo prático quando se trata de um negócio arquitetado como o comércio e navegação baleeiros; na beleza da Natureza (há uma cena inesquecível em que ele acaricia e brinca com um grupo de baleias dóceis num dos arquipélagos pelos quais o Pequod passa); mas também, e por vezes principalmente, na humanidade — o que é sentir e pensar, num mundo como esse? Porque o mundo é mundo desde muito antes dos livros grandiosos.
Ismael não veio apenas para nos contar sobre a trágica história de obsessão e vingança do Capitão Ahab. Ismael — cuja alcunha [5] significa “Deus ouvirá”, como quem endereça uma carta a ninguém especificamente, dizendo “a quem interessar possa”, ou “Aquele que tem bons ouvidos para ouvir, que ouça” (Mt 13:9) — veio também para contar o quanto a busca por uma aventura pode render a criação de laços cordiais, bem ajustados, até. Nos primeiros capítulos, quando encontra uma hospedaria onde passar as noites antes de seu embarque, ele é forçado a dividir o quarto com um estranho — que mais tarde descobre ser um príncipe canibal. Queequeg se torna, então, um parceiro fiel; os dois se casam num ritual da tribo indígena a que Queequeg pertence — mais um detalhe cuja relevância acadêmicos e leitores de todo o mundo parecem em geral ignorar [6]; e, acredite, haverá relevância nesse laço até a última página.
Ismael veio contar como é viver e trabalhar no mar com pessoas tão diferentes de você, sob lideranças tão díspares entre si, encabeçadas por uma chefia que pensa num único propósito pessoal [7], enquanto as engrenagens do empreendimento continuam a ser giradas como que focadas no propósito comercial, o que logo a tripulação, ludibriada de início, depois seduzida por uma moeda de ouro, irá descobrir ser o menos importante na viagem que toparam fazer: estão ali para realizar o sonho sombrio da alma rachada [8] de um homem megalomaníaco, e não para cumprir com os papéis laborais a que de início se propuseram.
E este narrador é tão esperto, mas tão esperto, e tão dos bons, mas tão dos bons, que na hora certa ele fará com que você esqueça da presença dele, só para sinalizar, num determinado momento, que ele sempre esteve ali: e que ele é você, um narrador da atribulada, e não menos divertidíssima e bonita, vivência humana.
“Chame-me de Ismael”, é assim que começa o livro. “Há alguns anos — não importa quantos ao certo — tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas. É o meu jeito de afastar a melancolia”, continua ele, “e de regular a circulação. Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que, sem querer, me vejo parando diante de agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro; e, em especial, quando minha tristeza é tão profunda que se faz necessário um princípio moral muito forte que me impeça de sair deliberadamente à rua e arrancar os chapéus de todas as pessoas, um atrás do outro, então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar.” Enquanto outros procuram compensações escusas, “[…] eu embarco discreto num navio. Não há nada de surpreendente nisso. Sem saber, quase todos os homens nutrem, cada um a seu modo, uma vez ou outra, praticamente o mesmo sentimento que tenho pelo oceano”, completa Ismael.
Talvez não seja muito dizer que a personagem principal de Moby Dick é, então, não Ahab; não o cachalote albino; não a Natureza, ou o oceano; mas a própria habilidade de se contar bem uma história.
Alguns trechos de Moby Dick, ou A Baleia para sentir um pouco mais do que discutimos e um bocadinho da audácia, do leve humor irônico e da presença narrativa de ISMAEL:
No capítulo 3, “A Estalagem do Jato”, antes do embarque no Pequod, Ismael se hospeda numa estalagem onde precisa dividir o quarto com um sujeito desconhecido, de outra etnia, claramente indígena e com tatuagens pelo corpo todo. A figura lhe é curiosa, mas só o apavora quando Ismael descobre, pouco antes da hora de dormir, que se trata de um canibal que veio para a cidade e que durante o dia vende cabeças empalhadas. Ismael entra em pânico. Mas o estalajadeiro, vindo a seu socorro, o acalenta: “Queequeg não tocaria num só fio do seu cabelo.” O próprio canibal, Queequeg, está rindo da situação com o sujeito que os hospeda. Os dois eventualmente conseguem acalmar Ismael, que comenta para o leitor que naquela noite acabou conseguindo dormir tranquilo: “Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão bêbado.” Poucas cenas depois, no capítulo 10, com um ritual da cultura tribal de Queequeg no quarto que dividem, Ismael e Queequeg se casam, o que o narrador logo explica ser o equivalente na cultura de Queequeg a selar uma amizade eterna. “Ele parecia ter se afeiçoado a mim tão natural e espontaneamente quanto eu a ele; e, quando acabamos de fumar, encostou sua testa na minha, puxou-me pela cintura e disse que a partir daquele momento estávamos casados; o que significava no dizer de seu país que éramos amigos do peito; morreria por mim de boa vontade, se preciso fosse.” Ismael comenta, com graça, para o leitor, que aos olhos de um conterrâneo a decisão pareceria um pouco precipitada demais. Mas que ele estava entregue àquela relação sem medo — ele e Queequeg, dois desajustados, se entendem. E há sutis descrições durante as cenas seguintes de eles dormindo coladinhos um no outro, nus no calorzinho do quarto enquanto a neve cai lá fora, brincando debaixo das cobertas.
E, já que estamos falando de amor, veja como os laços fortes entre Ismael e Queequeg se formam, em pequenos trechos do Capítulo 10, “Um amigo do peito”, e do 11, “Camisola”, culminando no insólito ritual de união matrimonial: “Com muito interesse, sentei-me a observá-lo. Embora fosse um selvagem, com horrendas marcas no rosto – na minha opinião, pelo menos –, suas feições tinham contudo algo que não era de modo algum desagradável. Você não pode esconder a alma. Através de todas as suas tatuagens sobrenaturais, pensei ter visto traços de um coração simples e honesto; e em seus olhos grandes e profundos, de um negro vívido e audaz, lampejava uma coragem capaz de desafiar mil demônios.” (Até o final do livro, veremos que essa profecia sobre Queequeg se confirma, num fechamento impressionante.) Ismael continua, sobre o encantamento dessa proximidade: “[…] comecei a ter consciência de sentimentos estranhos. Senti algo derretendo em mim. Meu coração despedaçado e minhas mãos enlouquecidas já não se rebelavam contra o mundo lupino. Este selvagem conciliador o redimira. Lá estava ele sentado, sua indiferença era de uma natureza que não conhecia nem a hipocrisia civilizada, nem a fraude mais branda. […] comecei a me sentir misteriosamente atraído por ele. E aquelas mesmas coisas que teriam repelido a maioria dos outros eram os próprios ímãs que assim me atraíam. […] Arrastei meu banco para perto dele […] dentro em pouco, quando me referi à sua hospitalidade da noite anterior, ele me perguntou se seríamos novamente companheiros de cama. Disse-lhe que sim; pareceu-me satisfeito, talvez até um pouco lisonjeado. […] Não sei por quê; mas não há lugar mais propício para confidências entre amigos do que uma cama. […] E assim, na lua-de-mel de nosso coração, eu e Queequeg ficamos deitados – um casal aconchegante e amoroso. […] Ficamos assim deitados na cama, conversando e cochilando de pouco em pouco, e de vez em quando Queequeg jogava suas pernas morenas e tatuadas com carinho sobre as minhas, tirando-as em seguida; havia total liberdade entre a gente, éramos tranquilos e confidentes […].”
Já quando a jornada do navio Pequod se iniciou e, depois de alguns dias, a tripulação enfim faz sua primeira descida de bote para caçar cachalotes, o capítulo 49, “A Hiena” apresenta um Ismael esbaforido, retornando a bordo, encharcado depois de uma caçada perigosíssima. Em choque, ele reclama quão arriscada a perseguição de uma baleia é na prática; quase morreu e está assustadíssimo. Questiona pasmo aos amigos: “Esse tipo de coisa acontece sempre?” E, vendo que é o único a estar surpreso com a loucura que é a atividade em que se meteu, doa-se à reflexão autodepreciativa de que o melhor é desembarcar e fazer um pequeno rascunho de seu testamento. Nele, brinca Ismael, ele deixaria tudo para Queequeg, seu marido. E, ao final do capítulo, assinado esse atestado de óbito metafórico, ele conclui com muita coragem, decidindo agarrar o touro pelos cornos: “[…] façamos juntos um refrescante mergulho na morte e na destruição, e que o diabo carregue o último que ficar para trás”.
Ismael por vezes quer nos preparar para o entendimento visual completo de uma cena futura. Em capítulos como o 60, “A ostaxa”, ele nos descreve a corda especial usada na caça às baleias. “Em relação à cena baleeira que em breve será relatada, assim como para um melhor entendimento de todas as cenas similares algures apresentadas, devo aqui falar da mágica e por vezes horrível ostaxa do arpão.” Ele explica que, antes que se desçam os botes do navio para começar a perseguição, a ostaxa é amarrada em volta dos botes, passando por lugares perigosos — é sempre um risco que alguém se machuque, se embole e até seja puxado junto se a baleia atingida pelo arpão disparar em fuga. No momento da empreitada, enquanto os outros marujos só se preocupam com as questões práticas, o sempre contemplativo Ismael filosofa: “Mas para que dizer mais? Todos os homens vivem envolvidos por ostaxas de arpão; todos nasceram com a corda no pescoço; mas é apenas quando são apanhados na súbita e traiçoeira reviravolta da morte que os mortais percebem os silenciosos, sutis e sempre presentes perigos da vida”.
O narrador é tão consciencioso — e, claro, também o autor por trás dele — que, no Capítulo 45, “A declaração juramentada”, ele próprio rechaça a grande tendência de se interpretar o livro como algo fechadinho, focado no aspecto limitador da monstruosidade da baleia branca e na obsessão do capitão por Moby Dick. É preciso, diz Ismael, fazer todo esse preâmbulo explanatório, todos esses minuciosos capítulos técnicos sobre o ofício marítimo, para que o leitor se sinta presente em todas as dimensões reais que a história tem a oferecer: “Pois este é um daqueles casos desalentadores, em que a verdade precisa de tanto reforço quanto o erro. Tão ignorante é a maioria dos homens de terra firme no que diz respeito a algumas das mais simples e palpáveis maravilhas do mundo que, sem a menção de alguns fatos simples, históricos ou não, sobre a pescaria, poderiam desprezar Moby Dick como uma fábula monstruosa, ou ainda pior e mais detestável, como hedionda e insuportável alegoria.” Ele se refere oficialmente à baleia. Mas é claro que há aqui também uma boa carga de mordacidade acerca da tendência da interpretação em inflar ou diminuir o organismo vivo que é qualquer relato.
[1] Trecho: “Depois disso, esse espadachim de bons costumes, pedindo a todos que se afastem, mais uma vez produz um talhe científico na massa [do corpo da baleia, que pende], e com uns cortes laterais […] divide-a em duas; de modo tal que, enquanto a pequena parte inferior [de gordura] permanece presa, a comprida tira superior, chamada ‘manta’, queda solta e pronta para ser arriada.”
[2] Trecho: “Conta dos livros que, há três séculos, a língua da Baleia Franca era considerada uma deliciosa iguaria na França, chegando a alcançar altos preços.”
[3] Trecho: “[…] que a cauda do maior Cachalote começa no ponto em que o tronco se afunila até atingir quase a cintura de um homem […].”
[4] Aliás, Melville ia aqui contra uma tendência literária de idealização da Natureza. Para ele, a Natureza podia, sim, ser cruel, monstruosa, ou extremamente imparcial, ao contrário do que pregava, por exemplo, seu contemporâneo-conterrâneo Henry David Thoreau (Walden, ou A vida nos bosques, um livro que Moby Dick parecia, em muitos aspectos, estar desafiando…).
[5] Há grande especulação sobre o nome real por trás da alcunha “Ismael”. Will Hoyt defende, num artigo à The Russell Kirk Center (kirkcenter.org), a teoria interessantíssima de que seu verdadeiro nome seria Jonas. Hoyt tira sua conclusão da cena do Capítulo 9, “O sermão”, em que o reverendo Mapple usa a história bíblica do profeta israelita que foi engolido por uma baleia em sua homilia para a pequena congregação de marinheiros prestes a partir ao mar, na qual Ismael e Queequeg se incluem. O título do artigo é bem direto — “Ishmael’s Real Name Was Jonah” (“O Verdadeiro Nome de Ismael era Jonas”).
[6] Com a aproximação do meio do livro, Queequeg irá sumir do holofote da narrativa durante um bom tempo, à medida que Ahab (que, reversamente, passa a primeira metade do livro sem aparecer) torna-se uma figura nuclear. O escritor inglês D. H. Lawrence (1885-1930, autor de O amante de Lady Chatterley, Filhos e Amantes e Mulheres Apaixonadas) tem uma visão mordente sobre a relação entre Ismael e Queequeg, demonstrada em um artigo presente na edição de Moby Dick de 2008 da Editora Cosac Naify.
[7] Ao qual Ismael não vai ligar muito em aderir. Ele acaba mesmo é seguindo o fluxo. A figura racional do livro, que vai se indispor com pulso firme contra a loucura de Ahab, é Starbuck, o 1º imediato do capitão. A título de curiosidade, a cafeteria americana Starbucks tem seu nome em homenagem ao personagem. A ideia inicial da empresa era se chamar Pequod (o nome do navio em que nossos personagens estão); mas se acabou por concluir que a referência podia soar como um mau presságio, e preferiu-se dar à marca o nome de Starbuck, que, no livro, representa a razão.
[8] Eu mencionei que, além do dano na perna e no falo, Ahab também já foi atingido por um raio? Pois bem.
BERNARDO LOPES nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 1988, e é bacharel em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Além de seus livros O que disse o Imperador (2016), Dona (2018), Debutante (2021 — tornado filme em 2025) e Canção Lógica: Primeira Temporada, primeiro romance do mundo em forma de série de TV, é autor de ensaios, contos e peças de teatro publicados em Kindle, alguns deles também em língua inglesa. Bernardo é roteirista e atual presidente da Academia de Ciências e Letras de Sabará, onde ocupa a cadeira nº 17. Seu próximo livro, Como desenhar um cubo de Necker, está previsto para o segundo semestre de 2025.