
Durante muito tempo, nos disseram que escrever à margem era uma desvantagem. Que estar fora do “centro” da literatura brasileira — esse lugar invisível, masculino, branco, urbano e sudestino — era sinônimo de inferioridade estética, de falta de técnica, de vocabulário pobre, de “literatura menor”. Mas eu aprendi — escrevendo, lendo, editando — que o centro não é onde nos colocam. O centro é onde a gente escreve.
As antologias não nos contaram tudo. Os prêmios não nos reconheceram o suficiente. Os currículos escolares repetiram os mesmos nomes como se fossem únicos, imbatíveis, sagrados. Mas do lado de fora, havia mulheres negras escrevendo com o corpo e com a fome. Havia poetas indígenas criando versos que são também território e resistência. Havia cronistas da periferia narrando o que a cidade oficial se recusa a enxergar. E havia leitores — muitos leitores — ávidos por histórias que falem a sua língua, sua pele, seu lugar.
O problema não é a literatura brasileira. É o filtro.
É quem decide o que deve ser lido.
É quem confunde tradição com repetição.
É quem enxerga reparação como ameaça e pluralidade como excesso.
Quando autores como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Eliane Potiguara, Cidinha da Silva, Bruna Mitrano, Márcia Kambeba ou Marcelino Freire escrevem, eles não estão apenas produzindo literatura: estão ampliando o espaço da própria linguagem, estão questionando os limites do que chamamos de “literário”. E isso não é pouco. Isso é revolução — estética, política, simbólica.
Não se trata de “incluir mais nomes” por benevolência. Trata-se de reconhecer que o cânone é uma invenção histórica — e como toda invenção, pode (e deve) ser revista. O que temos hoje como “literatura brasileira” é uma amostra limitada de tudo que já foi escrito nesse país continental. E essa limitação não é neutra. Ela é social, racial, patriarcal. É uma escolha — e como toda escolha, carrega exclusões.
Mas há quem escreva apesar disso. Quem publique com recursos próprios, com editoras independentes, com o corpo como tipografia e a urgência como editora. Há quem transforme silêncio em verso. Há quem escreva sem saber se será lido — e ainda assim escreva, porque não escrever seria consentir com o apagamento.
Então sim: o centro é onde a gente escreve.
Se é no interior, no quilombo, na aldeia, no fundão da cidade, na beira do rio, que a palavra pulsa — é ali que está o centro da literatura brasileira.
E quem não quiser enxergar, que fique com seu cânone velho, limpo e morto.
Nós seguiremos escrevendo — sujos, vivos, marginais, centrais.
Jéssica Iancoski
Jéssica Iancoski (1996) é editora, poeta e articuladora cultural. Presidente da Associação Privada Sem Fins Lucrativos Toma Aí Um Poema, a primeira editora no modelo ONG do Brasil, já faturou mais de R$ 1 milhão no mercado editorial, consolidando-se como referência em inovação e impacto social. Graduada em Letras (UFPR) e Psicologia (PUCPR), com especializações em Gestão de Projetos e Negócios, é autora de mais de 10 livros, incluindo A pele da pitanga (finalista do Prêmio Jabuti). Reconhecida por sua atuação inclusiva, publicou mais de 2 mil autores e produziu mais de 1.500 poemas audiovisuais, alcançando 1 milhão de acessos. Jéssica também recebeu prêmios como o Candango de Literatura (GDF) e Sérgio Mamberti (MinC) e, atualmente, é curadora do Prêmio Literário da Cidade de Curitiba.
José Gonçalo
diz:Parabéns Jéssica! Você enfunou as velas do barco literário brasileiro. A grandeza da literatura brasileira encontra-se fora da ABL. A intenção do Machado foi nobre, mas esvaiu-se há muito.
Toma Aí Um Poema
diz:Muito obrigada, José! Que lindo comentário. Concordo com você: a verdadeira grandeza da literatura brasileira pulsa fora das paredes douradas e polidas da ABL. E a gente segue navegando com essas velas enfunadas, levando poesia e reflexão onde o vento nos levar.
Raul Schaefer Filho
diz:Beleza, Jéssica! Consciente, objetivo e verdadeiro. Os chamados “marginais” agradecem a sua corajosa mensagem.
Toma Aí Um Poema
diz:Raul, muito obrigada pelo reconhecimento e pelo carinho! Que bom saber que a mensagem encontrou eco e que os chamados “marginais” se sentem representados. Sigamos firmes, transbordando palavras e coragem.
Ubirajara Lemos
diz:Buenas!!! Sendo assim, porque não criar uma “Academia Brasileira de Letras Real” ou Verdadeira?
Toma Aí Um Poema
diz:Ubirajara, adorei a provocação! Quem sabe um dia a gente não cria mesmo essa “Academia Brasileira de Letras Real” – aberta, viva, plural e com portas sempre escancaradas? A gente segue, mantendo-se sonhadores e de braços abertos para todo mundo que queira escrever e transformar.
Rilnete Melo
diz:Que texto incrível, necessário e delicioso de ler! Escrevemos no centro e transbordamos por todos os lados …
Parabéns Jéssica Lancoski!👏🏻👏🏻👏🏻🤝🏻❤️
Toma Aí Um Poema
diz:Rilnete, que comentário lindo! 💖 Fico muito feliz que o texto tenha ressoado dessa forma, e mais ainda por você ter transbordado junto. Muito obrigada por ler, comentar e fazer parte dessa rede que acredita no poder da palavra. Que sigamos escrevendo e ocupando todos os cantos!