Entrevista com Camila Passatuto, autora de “Nequice: Lapso na Função Supressora”

Escritora paulista, autora dos livros “TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada” (Litteralux, 2017) e “Nequice: Lapso na Função Supressora” (Litteralux, 2018) , livro finalista na categoria contos do Jabuti 2019.

Sobre você e sua relação com a escrita

1. Para começar, pode nos contar um pouco sobre você e sua trajetória como escritor(a)? Como a escrita entrou na sua vida e o que a mantém presente no seu dia a dia?

O engraçado é que sempre tive uma relação complicada com as palavras. Na primeira infância eu quase não falava; os sons, a grafia, os significados e a mistura daquilo tudo eram muito complexos para mim. Mesmo rodeada de estímulos de leitura (mundo, livros, músicas), nada foi fluido no meu processo de aprendizagem.
Então, por volta dos oito anos de idade, entendi que a maneira como a escola e o mundo tentavam me alfabetizar não estava dando certo (risos). Aí comecei a decorar o desenho das palavras e o som exato de cada sílaba. Não importava o significado e o resultado do dueto; por ora, lembrar exatamente o som correto e o “desenho” dele era o que iria me fazer “sobreviver” até a quinta ou sexta série…

Com 11 anos, comecei a me encantar por livros didáticos. Lembro quando a escola na qual eu estudava iria se desfazer de centenas de livros didáticos  (não me lembro o motivo), mas, como estávamos em 2001, aqueles livros certamente eram da década de 80. Bom, uma professora anunciou o maior evento já esperado por mim, até aquele momento: centenas de livros, e os alunos poderiam levar para casa quantos quisessem. Não deu outra: muni minha mãe de dezenas de sacolas e fomos. Chegando ao local, pasmem (risos), não havia ninguém além de nós e da coordenadora. Bem, amigos, ali realizei um sonho: minha biblioteca de livros didáticos de quinta à oitava série. Acho que foram as poucas vezes nesta vida em que me senti tão leve e feliz. Enfim. Após esse evento canônico na minha vida, o próximo passo era conhecer a tal da literatura.

Ainda com 11 anos, entendi que escrever (e escrever, sem parar) iria me dar fluência na fala, na pronúncia e na própria escrita.

Nessa época, conheci precocemente, por um erro de capa (risos), a escrita teatral de Shakespeare. Foi aí, na pré-adolescência, que entendi que eu poderia fazer com a escrita o que compositores e cantores faziam com letras, melodias e timbres… o quase fechar de glote por conta da emoção.
Aquilo que eu treinava na infância se fez torpor insano com a junção de palavras, ideias, significâncias outras que palavras mesmas poderiam propor. Isso me encantou, e me encanta até hoje.

Foi com 19 anos, lá em 2007, na era dos blogs, que comecei a expor minha escrita, que já se arrastava, rebenta, desde os 11. A partir daí, vieram diversos convites para antologias poéticas, revistas literárias, conversas, projetos e, finalmente, em 2017, o lançamento do meu primeiro livro de prosa poética: “TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada”.

Tudo muito legal até aí, né? Aí, em 2018, já lançava o meu segundo livro, com uma feliz indicação ao Jabuti de 2019… mas a vida é foda. A pandemia chegou, eu peguei COVID-19, adoeci, e minha memória e a capacidade de escrita ficaram seriamente comprometidas.

Hoje, 26 de setembro de 2025, seis anos depois… luto para conseguir tirar páginas e páginas que estão aqui na minha cabeça, quase a explodir meu peito…

2. Quais autores, autoras ou obras foram referências importantes para você ao longo da sua vida e da sua carreira?

Vamos lá: Franz Kafta, Clarice Lispector, Cortazar Augusto dos Anjos, Shakespeare, Maiakovski, Cecília Meireles, Gabriela Mistral, André Breton, Arthur Rimbaud, Guimarães Rosa… 

3. Que experiências, temas ou questões pessoais costumam aparecer na sua escrita?

Nos meus textos, gosto de brincar e experimentar sinestesias, trabalhar a violência como meio opressor, de libertação e de alienação ( às vezes como cena inicial, às vezes como objetivo final), ter a palavra como recurso de espanto;  explorar o ambiente urbano e industrial, o feminino como eixo de ruptura nas narrativas e o ambiente hospitalar-manicomial com suas personas. Bom, acho que resumi o que gosto de escrever aqui.

Sobre o livro

4. Como nasceu a ideia do seu livro e por que você escolheu exatamente esse título?

Nequice nasceu do TW, o meu primeiro livro. O TW, como gosto de expor (não cabe explicar, só expor) ele é feito da violência crua, sem rodeios. Já Nequice é o vazamento do resultado de violências. Acho que isso já explica os títulos.

5. Se tivesse que resumir esse livro em uma palavra, qual seria e por quê?

Torção. Porque é o sentimento que tenho toda vez que me deparo com ele. Leio e sinto o torcer de algo: a deformação como mãe do belo, um viés de ponto de vista (?). Nequice traz também um frescor, para mim, na forma. Minha grande Torção. 

Isso me lembra o texto do escritor e jornalista Márwio Câmara sobre Nequice: ele fala de “uma literatura performática”(risos)

6. Durante o processo de criação deste livro, houve algum momento que te surpreendeu ou que mudou a forma como você via a história?

O processo de escrita, para mim, é um tanto doloroso. Eu realmente me permito viver, experimentar, revisitar monstros ou até delirar diante de um objetivo poético-literário. Nequice fez com que essa vivência fosse mais internalizada, inquieta e solitária. Não sei se houve surpresas, mas, em algumas pesquisas e testes de ritmos, dores e escapes, ele me fez até duvidar da sua qualidade, por pairar em uma atmosfera de torpor, chegando a me perder em certas “metas”. (Nunca tinha parado para pensar nisso, mas tenho a impressão de que curti demais escrever Nequice, rs.)

7. Que parte da sua obra você acredita que os leitores costumam se identificar mais? E por quê?

No mês passado, uma leitora me falou: “Não sei se entendi de fato o que você quis dizer, mas realmente senti na pele o que disse.” Eu adorei escutar isso. Acredito que, no geral, esse incômodo, esse “fazer sentir”, é o que se sobressai. E eu até gosto. Talvez seja meu grande objetivo: que a literatura, a escrita, seja sentida na carne

É demais; adoro quando leio algo e isso acontece comigo.

8. Que convite de leitura sua obra oferece a quem se dispõe a atravessá-la?

Um convite a experimentar as palavras, os ritmos e os temas de modo mais carnal, realmente violento.

9. Onde os leitores podem encontrar ou adquirir seu livro?

O “Nequice: Lapso na Função Supressora” está disponível no site da editora Litteralux: https://www.editoralitteralux.com.br/catalogo-titulo/nequice-lapso-na-funcao-supressora

Mensagem final

10. Que reflexão ou provocação você gostaria de deixar aos leitores que se aproximem do seu livro?

A leitura pode te desafiar e isso é bom. Vá, lute e vença.

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