Em Poesia em Decomposição, Ana Carla Bellon apresenta uma escrita que emerge do resto, da ruína, daquilo que apodrece — e, justamente por isso, floresce. Inspirada pela obra de João Cabral de Melo Neto, a autora constrói uma poética crítica e insurgente, que encara a linguagem em seu estado mais cru e propõe uma espécie de resistência pelo verso.
Natural de Curitiba, com passagem por cidades como Reserva, Ponta Grossa e, atualmente, Guaratuba, Ana Carla transita entre a escrita técnica e a literária, entre a educação e a percussão. Mestre em Letras pela UFPR e doutora pela UERJ, ela atua como autora de materiais didáticos, revisora e professora, mas também integra coletivos de maracatu e percussão com outras mulheres — experiências que reverberam em sua escrita.
Poesia em Decomposição não é apenas um livro de poemas: é um experimento com os limites da forma e do sentido. É uma linguagem contaminada, consciente de suas rachaduras, que desobedece padrões e se abre para o que pulsa nas entrelinhas. Aqui, o poema não busca ornamento — busca tensão, estranhamento, rasura. Busca permanecer mesmo quando desfeito.
Nesta entrevista exclusiva ao blog da Toma Aí Um Poema, Ana Carla Bellon fala sobre a gênese do livro, o que significa escrever a partir da decomposição e como a poesia pode ser um campo fértil para insubmissões — mesmo (ou principalmente) quando nasce do que já não serve mais.

Fale um pouco sobre você — quem é Ana Carla Bellon na vida cotidiana e quem se revela quando você começa a escrever?
Meu nome completo é Ana Carla Vieira Bellon, e o tema da escrita ocupa quase tudo na minha vida — se não tudo. Não sei separar o cotidiano da escrita, porque é justamente ela que me mantém nele. Sem escrever, não sei ser. Não consigo viver.
Resolvo tudo por meio da palavra: seja para me divertir com rimas, expor a carne viva da vida, ganhar dinheiro, fazer terapia ou simplesmente criar. Digo isso porque trabalho com escrita — sou elaboradora de originais de materiais didáticos há muitos anos (me contratem, rs). Foi a forma que encontrei de me manter próxima da escrita e do pensamento. Sempre que trabalhei com outras coisas, sofri demais com a ausência dessa atividade. Quando entendi a origem desse vazio, aceitei.
É difícil viver de escrita neste continente — então, é quase inevitável que essa escolha venha acompanhada de resistência. Mas é uma resistência feliz. Quando escrevo profissionalmente, aflora meu lado centrado, dedicado, atento a prazos e demandas. Já quando escrevo de forma artística, é o exercício mais puro de liberdade, integridade e coerência com o que conheço de mim — aconteça o que acontecer com o texto.
Passei muito tempo mergulhada no autojulgamento, mas hoje desapeguei. Aceito o que nasce dos momentos, seja o que for — com ou sem qualidade técnica ou orgânica. É o que é.
Sou formada em Letras e doutora em Literatura Comparada, mas o que escrevo como expressão pessoal não passa por aí — e acho importante dizer isso. Inclusive, meu trabalho acadêmico sempre foi uma tentativa de martelar as ideias categóricas sobre a arte, de tensionar fronteiras.
Sempre me mudei muito — tenho uma experiência meio cigana, rs — e esse movimento mais ou menos livre (porque uma mulher nunca é completamente livre; nos matam por existir) me permitiu conhecer muitas pessoas e construir muitas amizades. Hoje, posso dizer que amizade, liberdade e escrita são os grandes pilares da minha vida. E tudo isso se mistura.
Como nasceu a ideia do seu livro “Poesia em Decomposição” e por que você escolheu exatamente esse título?
A ideia do livro nasceu de forma orgânica — é fruto de anos de experiências, auto-observação e, consequentemente, de observação do mundo. Sempre escrevi, mas percebo que, a cada etapa da vida, a escrita assumia um corpo diferente. Todos esses corpos, entendi depois, eram como um corpo sem órgãos — uma entidade que ouvia e dizia mais do que o meu corpo físico, embora dele derivasse.
Por um tempo, procurei identificar minhas obsessões, temas recorrentes, fixações… até perceber que mais do que os temas, o que me movia era o gesto de desmontar e expor estruturas — as do poema, as minhas, as do mundo. A escrita, para mim, é isso: um modo de se derramar para fora, de enfrentar o mundo e a si mesma, um processo de cura da própria cura. E, para isso, é preciso encarar tudo de dentro — tanto os sistemas externos quanto os internos.
O título Poesia em Decomposição surge de um verso da Antiode, de João Cabral de Melo Neto — e da ideia de que o poema não nasce apenas da inspiração limpa e ordenada, mas também da sujeira, do resto, do que foi rejeitado. Decompor é um verbo com duplo movimento. De um lado, trata-se de desmontar o poema, quebrar sua forma, observar suas engrenagens internas — pensar o poema como objeto que se interroga a si mesmo. Compor ao contrário.
De outro lado, decompor é também encarar o que apodrece, o que fede, o que se desfaz. É pensar no que é podre no mundo, na linguagem, na vida, em quem escreve. É um exercício de insurgência poética que vê o verso como corpo estranho — capaz de resistir, transgredir e florescer da decomposição. Aquilo que se engole seco, que não se diz, que se sonha, se esconde, se mascara — é disso que o poema também pode ser feito.
Se tivesse que resumir sua livrete em três palavras, quais seriam e por que elas capturam a essência da obra?
Sempre é difícil resumir, mas acredito que autoinsurgência, decomposição e enfrentamento são palavras que capturam bem a essência do livro.
Autoinsurgência porque há, nos poemas, um movimento de olhar para si mesma de forma não humana — escrever é também se expor, e na escrita poética há sempre a revelação de algo indizível sobre nós, algo que só conseguimos ver quando se transforma em linguagem.
Decomposição remete tanto ao aspecto metalinguístico da obra — à desconstrução do próprio poema — quanto à escolha de abordar temas que não são óbvios, nem sempre suaves, mas que, justamente por isso, adubam a vida.
E enfrentamento porque há, ao longo do livro, uma tensão constante com as estruturas — pessoais e coletivas. Escrever, nesse contexto, é também resistir.
Durante o processo de escrita, houve algum momento em que a o livro te surpreendeu — uma descoberta sobre você ou sobre o tema que capturou sua atenção? Você poderia compartilhar com a gente?
Muitas coisas — nem sempre boas, nem sempre ruins. Acho que um ponto forte desse processo foi perceber que, embora eu escreva a partir de uma perspectiva de autoinsurgência, olhar para a produção apenas como algo pessoal e autocentrado não é potente o suficiente.
Nunca encontrei sentido em publicar só por mim — só passou a fazer sentido quando compreendi que a soma dos fatores altera o produto. Unir forças com outras pessoas, expor o que se diz, permite perceber a universalidade da literatura: o tema nunca é apenas pessoal, porque sempre fala de humanidades.
Ser poeta de gaveta não adianta. A gente se espalha, se perde. Como já dizia Sérgio Sampaio: “Um livro de poesia na gaveta não adianta nada. Lugar de poesia é na calçada.” É junto com os outros.
Aprendi isso quando comecei a participar do Slam Ressoa, aqui em Guaratuba. Foi ali que entendi a importância de tirar a poesia da gaveta e me unir a outras vozes. Ouvir o poema do outro, num mundo onde todos só falam de si, é um gesto radical: é construir ouvidos. É preciso reaprender a escuta, ao mesmo tempo em que se fala. É simples — e revolucionário.
Qual sentimento você mais espera despertar nos leitores ao ler seu livro: inquietação, nostalgia, esperança ou outro? E por quê?
Espero que, ao ler os poemas deste livro, a pessoa possa se sentir pertencente em algum momento — seja como for. Pertencente em sentimento, em angústia, em inquietação, em desejo. Que se reconheça ali, em alguma fresta. Que se sinta, enfim, ouvida. Porque essa é a intenção: somar vozes, somar afetos, para que juntos possamos transgredir as linhas duras — de dentro e de fora. Mas sempre em conjunto.
Gostaria de acrescentar mais alguma reflexão, comentário ou curiosidade sobre sua obra para os leitores perceberem melhor sua proposta?
Acho importante dizer que a proposta do livro é olhar para o poema como ruína fértil — como matéria viva que se refaz ao mesmo tempo em que se desfaz. É um convite a enxergar a linguagem como uma floresta de fungos: cada verso é um corpo estranho, carregando em si o poder de transgredir, de questionar e, talvez, de renovar.
Claro, tudo isso pode parecer aleatório ou hermético à primeira vista — mas também pode tocar em algo pungente, justamente por meio do reconhecimento. Porque, no fim, como lembra João Cabral, a poesia que realmente importa é aquela que brota quando a linguagem já parecia morta.
É a poesia que fermenta.

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A Coleção Gralha Azul está lançando Poesia em Decomposição, de Ana Carla Bellon — uma obra que investiga poema como ruína fértil, insurgência, transgressão e renovação.
Inspirado pela noção de decomposição poética de João Cabral de Melo Neto, o livro provoca reflexões sobre linguagem como matéria viva — capaz de apodrecer e florescer. Cada verso transita entre o exposto e o oculto, o corpo estranho e a urgência, apontando para uma poesia que fermenta no terreno do incerto.
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