Nos debates recentes sobre a produção literária no Brasil, tem ganhado força a crítica de que a literatura brasileira contemporânea apresenta-se excessivamente acomodada ou “esteticamente confortável”, evitando provocar incômodos profundos em seu público. Essa percepção foi expressa, por exemplo, em coluna de Jéssica Iancoski (2025), que caracteriza grande parte das obras atuais de destaque como livros de texto correto e estética limpa, capazes até de abordar temas “sérios” ou “profundos”, porém de maneira palatável que “não incomoda ninguém”. Em outras palavras, seriam obras formalmente bem cuidadas, mas anedônicas do ponto de vista crítico – livros que dizem falar de dor ou trauma, porém sem tocar verdadeiramente na ferida, evitando confrontar o leitor (e especialmente as elites culturais) com desconfortos ou verdades perturbadoras. Esta crítica suscita uma reflexão teórica mais ampla: quais dinâmicas estéticas, sociais e de mercado têm contribuído para tal cenário de suposta estagnação ou “entorpecimento” da literatura brasileira contemporânea? E em contraste, que vozes dissidentes ou marginais vêm resistindo a essa normatização do discurso literário?
Para explorar essas questões, este ensaio examina (1) o fenômeno da “estetização da dor” e a evitação do incômodo nas obras mainstream; (2) a invisibilização de vozes literárias marginais – especialmente de grupos subalternizados – pelos circuitos dominantes; (3) o papel do mercado editorial conservador na manutenção de uma norma literária segura; e (4) as formas de resistência e experimentação que emergem nas margens, tensionando as fronteiras do campo literário. A análise apoia-se em perspectivas teóricas (como crítica cultural marxista e decolonial) e em depoimentos de escritores e estudiosos, visando compreender por que a literatura nacional recente aparenta “febre baixa” em risco e confronto, e como um resgate da função inquietante da literatura poderia revigorá-la.

O Conforto Estético e a Evitação do Incômodo
Uma das características apontadas na literatura brasileira atual é a preferência por uma estética polida e elegante que, embora trate de temas potencialmente dolorosos (como perdas pessoais, conflitos familiares, traumas íntimos), o faz de modo a minimizar o impacto. Essa “assepsia narrativa” resulta em obras que tocam na ferida somente de luvas, higienizando a apresentação do sofrimento. Como observou Iancoski, muitos livros contemporâneos “falam de temas profundos de um jeito que não incomoda ninguém”, quase como produtos culturais devidamente embalados em design minimalista e linguagem contida. Em vez de gritarem verdades incômodas, tais obras preferem um tom de ensaio elegante, um tratamento estético que suaviza a dor e evita extremos.
Do ponto de vista crítico, esse fenômeno pode ser interpretado através do conceito de indústria cultural e da busca pela aceitabilidade de mercado. A lógica subjacente parece ser a de que livros que desestabilizam demais o leitor ou desafiam convenções correm risco comercial – não seriam bem recebidos por editoras grandes ou pelos prêmios literários que legitimam obras no circuito principal. Assim, instala-se uma espécie de “protocolo de segurança” estético: narrativas que apresentem sofrimento devem primeiro passar por uma “lavanderia conceitual” para sair limpas, esteticamente palatáveis, antes de serem ofertadas ao público. Problemas como a maternidade e suas dificuldades, por exemplo, até aparecem com frequência na ficção recente, mas geralmente em registros dóceis, enfatizando aprendizados ou pequenas epifanias cotidianas, sem jamais atingir notas de verdadeiro desespero ou raiva. Conflitos de classe ou violência estrutural, quando presentes, são frequentemente enquadrados de forma estilizada, diluídos em metáforas genéricas ou diluídos pelo lirismo, de modo a não ferir sensibilidades.
Esse movimento de evitação do incômodo contraria uma função clássica da arte literária identificada por muitos escritores e críticos: a de provocar reflexões desconfortáveis e desafiar o status quo. O escritor brasiliense Dan, em entrevista, chega a afirmar que “o pior que um romance pode fazer é reiterar aquilo que o leitor quer ler” – ou seja, apenas confirmar expectativas e crenças já confortáveis. Em sua visão, a boa literatura deve “fugir de histórias edificantes” e resistir à tentação de oferecer redenções fáceis num país marcado pela violência; pelo contrário, deve abrir caminho para a “baderna” estética e moral, para desestabilizar certezas do leitor. “O papel dos livros, como um todo, é também incomodar”, resume Dan. Essa declaração ecoa uma longa tradição literária que valoriza a arte como incisão cirúrgica na consciência, capaz de confrontar o leitor com verdades incômodas sobre si e sobre a sociedade. Grandes momentos da literatura brasileira no passado – do realismo crítico de Aluísio Azevedo e Lima Barreto às experimentações irônicas de Oswald de Andrade ou à prosa crua de Rubem Fonseca – exerceram precisamente esse papel de desconstruir narrativas confortáveis e expor as tensões sociais latentes. A crítica atual, porém, sugere que esse potencial incendiário tem sido atenuado nas obras em evidência hoje, possivelmente em nome de uma estética “profissional” e de exigências mercadológicas que privilegiam a segurança temática e a homogeneidade de estilo.
Invisibilização de Vozes Marginais e Narrativas Urgentes
Um efeito colateral evidente desse panorama “bonitinho” é a exclusão ou invisibilização de obras verdadeiramente disruptivas, em especial aquelas produzidas por autores de grupos marginalizados ou fora do eixo cultural hegemônico. Embora exista no país uma diversidade vibrante de escritores fora do centro tradicional – isto é, fora do eixo sudestino, urbano, branco e masculino que historicamente dominou os cânones – essas vozes raramente alcançam as mesas centrais das livrarias ou o pódio dos prêmios literários importantes. Há, por exemplo, hoje poetas e prosadores indígenas escrevendo em línguas originárias e em português simultaneamente, reinventando a sintaxe normativa; mulheres negras explorando em primeira pessoa vivências de opressão e resistência; autores LGBTQIA+ (inclusive pessoas trans) tratando de amor, violência e identidade de maneira visceral. Essas obras muitas vezes carregam uma fúria estética e política notável – derivada da posição “à margem” de seus autores – e experimentam em linguagem e forma de modo original. No entanto, conforme denunciam críticos, elas tendem a ser classificadas pelo sistema como “difíceis”, “radicais” ou “não vendáveis” e, assim, ficam de fora das grandes editoras e dos holofotes midiáticos.
Essa marginalização não é novidade; faz parte de uma estrutura histórica de exclusão literária no Brasil. Desde o período colonial e ao longo do século XX, a definição do que constitui “boa literatura” esteve associada a círculos letrados ligados às elites econômicas e culturais. Narrativas que confrontavam diretamente as estruturas de poder – seja em conteúdo (denunciando racismo, pobreza, autoritarismo) ou em forma (rompendo com a norma culta da língua, com gêneros canônicos, etc.) – foram frequentemente relegadas a segundo plano ou rotuladas como periféricas. Nos anos 1970 e 1980, por exemplo, a chamada literatura marginal ganhou corpo com escritores das periferias urbanas escrevendo de maneira independente e sobre suas realidades. Estudos antropológicos como o de Érica Peçanha (2009) documentam como autores da periferia paulistana, como Ferréz, Sérgio Vaz e Sacolinha, articularam movimentos culturais (saraus, coletivos, fanzines) para difundir sua produção à revelia do mainstream. Essa literatura “de quebrada” não apenas retratava a vida nas favelas e subúrbios com linguagem própria, como também tinha um claro propósito de subversão: “por meio de sua literatura, os escritores da periferia tentam desestabilizar ou subverter relações de poder e dominação estabelecidas, escrevendo sua própria história”. Ou seja, a escrita marginal funcionava como contradiscurso, rompendo o monopólio narrativo das classes dominantes e reivindicando o direito de autorrepresentação dos grupos historicamente silenciados.
Na contemporaneidade, essa tensão centro vs. margem permanece. Ainda que nomes oriundos de fora do “centro” tenham ganhado visibilidade nos últimos anos (por exemplo, o baiano Itamar Vieira Junior ou a mineira Conceição Evaristo), a regra geral aponta que vozes dissidentes continuam sub-representadas nas estruturas formais de consagração. Conceição Evaristo, importante escritora negra, cunhou o termo “escrevivência” para definir a escrita calcada na experiência cotidiana das mulheres negras, e enfatiza que sua literatura não busca tranquilizar os leitores privilegiados, mas sim provocá-los: “a nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. Essa frase poderosa faz referência direta à casa-grande (símbolo da elite branca patriarcal) e sintetiza a ideia de que a verdadeira literatura dos oprimidos não serve para embalar o sono da elite, mas para atormentá-la com a consciência de suas injustiças. Trata-se de uma postura literária frontalmente contrária àquela literatura “anedônica” anteriormente descrita – aqui a dor não é estetizada para conforto, mas sim lançada como denúncia cortante. No entanto, é sintomático que Conceição Evaristo só tenha sido amplamente publicada e reconhecida já tardiamente (aos 70 anos, nas últimas duas décadas), e apesar de sua celebridade intelectual, ela não figurou em certos prêmios mainstream até enfrentar campanhas de leitores reivindicando seu lugar. O mesmo ocorre com diversos talentos das periferias urbanas, comunidades indígenas e movimentos LGBTQIA+: seus livros muitas vezes circulam mais em circuitos independentes (feiras alternativas, slams de poesia, publicações artesanais ou de editoras pequenas) do que no circuito “oficial”. Em resumo, as estruturas de consagração literária no Brasil tendem a invisibilizar narrativas verdadeiramente urgentes – aquelas que escancaram desigualdades ou exploram identidades dissidentes – perpetuando assim uma visão limitada e “pacífica” do que seja a literatura brasileira atual.
Mercado Editorial e Normatização Conservadora
Para entender por que a literatura de grande circulação tem evitado o risco e a confrontação, é fundamental analisar o papel do mercado editorial e suas dinâmicas de poder. O mercado literário brasileiro, especialmente no segmento das grandes editoras comerciais, é frequentemente descrito como conservador e oligárquico. Muitas das editoras tradicionais são empresas familiares de longa data, sediadas no eixo Rio-São Paulo, e tendem a operar sob lógicas de negócio cautelosas. Como aponta Mariana de S. Lima, especialista do Instituto Estação das Letras, “o mercado editorial no Brasil ainda é conservador e as grandes editoras, em sua maioria, são empresas familiares”. Esse conservadorismo estrutural se reflete tanto na seleção de manuscritos quanto na formatação do produto livro. Em linhas gerais, editoras de grande porte buscam minimizar riscos financeiros – o que significa apostar em autores já consagrados ou em fórmulas narrativas que tenham apelo comprovado junto a um público leitor estabelecido (majoritariamente classe média urbana). Nessa lógica, tende a haver pouco espaço para experimentação formal radical ou para vozes muito fora do padrão, que são vistas como apostas incertas de retorno duvidoso.
Além disso, há um componente ideológico: os editores e curadores literários dessas casas fazem parte, em sua maioria, de uma elite cultural que compartilha determinados gostos e referências, moldando assim uma norma estética hegemônica. Pierre Bourdieu, ao analisar o campo literário, observou que a definição do legítimo artístico é resultado das relações de poder simbólico: grupos dominantes impõem sua visão de cultura legítima, frequentemente desqualificando expressões oriundas de outras classes ou grupos como “menores” ou “de mau gosto”. No caso brasileiro contemporâneo, percebe-se algo semelhante – uma forma sutil de “policiamento de gosto” que filtra aquilo que chega ao grande público. Livros escritos em linguagem vernácula popular, ou que mesclam português com dialetos regionais e indígenas, tendem a ser vistos com desconfiança pelas editoras tradicionais, que os julgam “mal escritos” ou “pouco universais”. Narrativas carregadas de violência explícita, sexo dissidente ou denúncia social contundente podem ser taxadas de panfletárias ou excessivas, caindo fora do crivo editorial que prefere narrativas equilibradas e “universais”. Em suma, o habitus editorial dominante favorece obras que não desafiem frontalmente a sensibilidade da elite cultural. Como bem resumiu Iancoski em tom irônico, é como se os editores “não pudessem ler nada que os deixe desconfortáveis”, preferindo livros que “limpam a ferida, mas não enfiam o dedo nela” – obras que expõem um pouco da dor, mas de um jeito estilizado que não chega a ofender ou inquietar profundamente.
Também não se pode ignorar a influência dos prêmios literários e da crítica especializada nesse processo de normatização. Os prêmios mais prestigiados (como Jabuti, Oceanos, etc.) possuem jurados que, ainda que bem-intencionados, frequentemente compartilham background semelhante ao dos editores e críticos de caderno cultural, o que leva a uma certa homogeneidade de critérios. Houve casos recentes de premiações controversas que suscitaram debates – como a escolha de obras formalmente clássicas (por exemplo, um livro de sonetos rigorosamente metrificados) sobre obras de caráter mais inovador. Tais resultados reforçam a percepção de que o establishment literário valoriza a continuidade estética (o respeito às formas canônicas, à “excelência técnica” nos moldes tradicionais) acima da novidade disruptiva. Enquanto isso, obras que confrontam estruturas de linguagem, de classe ou de identidade permanecem às margens, recebendo pouca atenção da imprensa literária e figurando raramente nas listas de “melhores do ano”. Esse cenário delineia uma hegemonia cultural no campo literário, na qual a elite letrada – protegida em seus “apartamentos com ar-condicionado e cafezinho”, para retomar a imagem mordaz de Iancoski – valida apenas aquilo que não ameaça sua visão de mundo. Em termos gramscianos, é a manutenção de uma cultura hegemônica que absorve ou neutraliza as expressões contra-hegemônicas, mantendo-as fora do mainstream sempre que possível.
Resistência, Experimentação e a Necessidade de Transformação
Apesar do quadro aparentemente adverso, é importante frisar que a literatura brasileira não está morta, nem totalmente paralisada – ao contrário, ferve nas bordas do sistema. Fora do radar das grandes editoras e premiações, uma multiplicidade de autores continua produzindo e inovando esteticamente, movidos por urgência expressiva e muitas vezes indiferentes às regras do jogo comercial. São escritores que escrevem “com o corpo inteiro”, como sugeriu Iancoski, ou seja, colocando nas palavras suas vivências corporais e emocionais sem autocensura. Muitos recorrem a espaços alternativos de circulação: os saraus e slams de poesia periférica permanecem ativos nas grandes cidades, feiras literárias independentes e cooperativas de autores proliferam, e as redes sociais digitais tornaram-se ferramentas para divulgar textos e formar comunidades de leitores fora do circuito tradicional. Essa vitalidade subterrânea indica que há demanda e energia criativa para uma literatura de maior risco e confronto – mesmo que o mercado estabelecido não a promova, ela encontra brechas para existir.
Um exemplo contemporâneo é o enorme sucesso de público do romance Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior. Embora publicado por uma editora de médio porte, o livro – que aborda temas pungentes como o legado da escravidão, a desigualdade agrária e a religiosidade popular no sertão baiano – conquistou leitores num boca-a-boca surpreendente e arrebatou os principais prêmios nacionais. O caso Torto Arado sugere que obras profundamente enraizadas na realidade social e carregadas de tensão podem, sim, ganhar centralidade, contradizendo a ideia de que “não vendem”. O próprio Itamar Vieira Junior defende a democratização e dessacralização da literatura, pregando que se derrubem as barreiras elitistas que separam o livro do grande público: “A gente precisa dessacralizar a literatura e torná-la de fato popular, para que as pessoas tenham interesse, para que leiam”. Essa declaração reconhece que por muito tempo o campo literário brasileiro foi tratado como um reduto quase aristocrático – uma esfera sagrada para poucos iniciados – e advoga por uma popularização que inevitavelmente envolve incorporar novas vozes e estilos. Dessacralizar, nesse contexto, implica romper com a noção de “alta literatura” intocável e admitir que histórias vindas da roça, da favela, das aldeias indígenas ou de corpos dissidentes também pertencem ao corpus literário nacional e podem interessar amplamente.
Do ponto de vista teórico decolonial, essa abertura é parte do processo de superar a “colonialidade” ainda presente na produção cultural – isto é, a continuidade de hierarquias coloniais que privilegiam conhecimentos, estéticas e línguas da elite (branca, masculina, heteronormativa) em detrimento das experiências e formas de expressão dos grupos subalternos. A literatura brasileira contemporânea, para se revigorar, parece precisar de uma “descolonização” interna: questionar seu cânone e seus filtros de legitimidade, permitindo que outras epistemologias e sensibilidades narrem o país. A emergência de editoras independentes focadas em diversidade – algumas fundadas pelos próprios escritores marginalizados – é um indicativo de mudança. Projetos como o coletivo Quilombhoje, que há décadas publica os Cadernos Negros, ou iniciativas mais recentes como a editora Venas Abiertas (dedicada à literatura periférica e de resistência), demonstram que há um movimento ativo de resistência literária.
Em síntese, a “febre baixa” de risco apontada na literatura dominante não significa apatia total do corpo literário nacional, mas possivelmente um desequilíbrio entre centro e periferia. O centro (academias, grandes editoras, prêmios) manifesta anemia criativa por conta de suas cautelas e convenções; já as periferias (geográficas, sociais ou estéticas) exibem os sintomas opostos – efervescência, experimentalismo, urgência. O desafio e a esperança residem em conectar esses polos, abrindo canais para que a energia das margens oxigene o centro. Isso demanda atuação crítica (por parte de resenhistas, professores, curadores de eventos) para dar visibilidade a obras fora do comum, bem como políticas públicas e institucionais que apoiem escritores independentes e promova a bibliodiversidade. Afinal, como lembra Antonio Candido em seu célebre ensaio O Direito à Literatura, a fruição literária e a criação artística não podem ser privilégio de uns poucos – são parte dos direitos humanos, intrínsecos à dignidade e à imaginação de todos.
Conclusão
A análise sugere que a aparente monotonia da literatura brasileira contemporânea é menos uma falta de talento criativo e mais um sintoma de filtros sistemáticos que determinam quais vozes são amplificadas e quais permanecem sussurrando à distância. Esses filtros – estéticos, comerciais e socioculturais – privilegiaram nos últimos anos uma produção segura, “bem-comportada” e esteticamente refinada, porém desprovida do poder de corte que caracteriza a grande literatura. Em contrapartida, existem criadores dispostos a “afiar a faca” da palavra e deixar marcas – autores que acreditam que um livro bom não é o que estanca feridas, mas o que as abre para expurgar o mal e provocar transformações. São eles que mantêm viva a chama da literatura como instrumento de questionamento e mudança.
Se a literatura brasileira atual “anda entediante”, como foi afirmado, a saída para essa letargia criativa está em arriscar mais, em não pedir licença para inovar, em recuperar a licença poética de incomodar o leitor. Isso significa acolher a raiva, a dor e a dissonância como matérias-primas legítimas da criação literária – não mais submetê-las a um banho de loja para torná-las apresentáveis. Significa também ampliar o escopo do que consideramos literatura brasileira, incorporando plenamente as vozes historicamente à margem. A longo prazo, é de se esperar que a pressão dessas vozes e a evidência de que há público para elas levem o próprio mercado a se reinventar, sob pena de se tornar irrelevante para as novas gerações. Como colocou um jovem escritor, “a literatura é um terreno maneiro para promover a baderna… o papel dos livros… é também incomodar”. Que promovamos, portanto, um saudável incômodo nas letras nacionais – pois dele pode advir não apenas renovação estética, mas também consciência social mais aguda. Em última instância, a literatura que deixa marca é aquela que não teme ferir antes de curar, revelando verdades escondidas e iluminando os cantos escuros da experiência brasileira. Somente abraçando esse potencial transformador a literatura brasileira contemporânea poderá escapar de qualquer tédio e reafirmar-se em toda a sua potência criativa e crítica.
Referências Bibliográficas (seleção):
- IANCOSKI, Jéssica. “A ‘Literatura Brasileira’ Tá Entediante, Sim.” Toma Aí Um Poema (coluna), 27 maio 2025tomaaiumpoema.com.br.
- VELOSO, Lucas. “Incômodo bom.” Revista Quatro Cinco Um, ed. #82, junho 2024quatrocincoum.com.br.
- NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. (resenhado em Ponto Urbe, USP)journals.openedition.org.
- EVARISTO, Conceição. Escrevivência. (Ocupação Itaú Cultural – Conceição Evaristo)ocupacao.icnetworks.org.
- Entrevista de ITAMAR VIEIRA JUNIOR a Isabella Sander. “A gente precisa dessacralizar a literatura…” Zero Hora/GZH, 02 jun. 2025gauchazh.clicrbs.com.br.
- LIMA, Mariana de S. “Introdução ao mercado editorial.” Instituto Estação das Letras, 2024estacaodasletras.com.br.
- CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura.” In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. (Ensaio).