O patriarcado pode tentar nos calar, mas continuaremos escrevendo nossas histórias
Por(entre)linhas chega à sua edição #10, o que merece ser celebrado, porque cá pra nós, escrever semanalmente uma newsletter que não traz retorno financeiro direto é, acima de tudo, uma questão de resistência.

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Curitiba, 03 de Março de 2025
Caro Patriarcado,
Passei algum tempo procurando uma palavra para me dirigir a você nesta carta. Prezado? Não, porque não te prezo. Querido, estimado, ilustre? Jamais. A escolhida foi essa, caro. Não no sentido de precioso ou valioso. Longe disso. Caro porque você me custa — e muito. Você drena meu tempo, minha energia, oportunidades e uma infinidade de direitos.
Você, sem dúvidas, é a coisa mais difícil que me acontece. E, como se não bastasse tudo que já me tira, ainda me vem, na noite do último domingo, com mais um golpe.

Que o Oscar é um prêmio seu (de homem branco para homem branco, de estadunidense para estadunidense), eu já sabia. Mas, quando penso que você está começando a enfraquecer, quando vejo que as novas narrativas para um mundo possível estão sendo traçadas e colocadas no jogo, você dá o bote, com seus olhos de hiena e falo murcho, que coitado, não sabe o que é fazer amor com uma mulher.
Vou ser bem sincera contigo, já que franqueza não é sinônimo de fraqueza, apesar de saber que disso você também não entende. Eu não tinha expectativa nenhuma de que Ainda Estou Aqui levasse a estatueta de Melhor Filme, afinal ele não atende ao principal critério para tal honraria: ser produzido nos Estados Unidos.
Mas isso que você fez foi golpe baixo, até mesmo para você.
Estou tentando assimilar os motivos de Anora ter sido indicado para tantas categorias. Não, eu não assisti a todos os filmes que estavam na disputa, mas assisti muitos — alguns aí, desse país que você adora tanto.
Sejamos sinceros: quais os critérios que você usou para premiar esse filme? Será que foi a objetificação descarada da personagem feminina? O reforço da misoginia? Ou seria mais uma vez aquela histórinha, ó, cuidado com os russos? Você escolheu, outra vez, o filme que reciclou um tema batido, que tenta parecer ousado enquanto reforça as mesmas narrativas de sempre. A personagem Anora não teve um arco de transformação real. Saiu tão puta quanto entrou, e vou usar essa palavra – puta – que é para você entender. Temo que se eu usar o termo politicamente correto, corro o risco de te confundir, já que nem de política, nem de correto você entende.
Vamos lá. Será que eu entendi a sua lógica?
O que você elegeu como melhor filme, o filme do ano, traz uma narrativa em que a Ani-Anora, busca um homem que a salve daquela vida promíscua. Vida essa em que ela ganha muitos dólares na calcinha e mesmo assim (porque é puta) vive em condições precárias. Como você espera de toda puta, Anora-Ani se dá mal, porque tão mafiosas quanto os russos são as outras mulheres da trama, né? No fim, ela até encontra um príncipe encantado, aquele brutamontes sensível que (pasme) mora com a avó. Mas ele tinha um defeito defeituosíssimo. Era pobre e nenhuma puta quer um homem pobre. Isso faz com que ela continue sendo puta, coitada, olha que triste a vida de uma mulher (que segundo você) escolhe ser assim. E então: condenada Ani! Você vai continuar sendo puta.
Uma personagem escrita para reafirmar a velha história de que uma mulher, por si só, nunca será suficiente.
Ah, calma lá! Antes que você me chame de feminista de araque, não estou criticando a atuação da Mikey Madison que interpretou o papel conforme o roteiro pedia. Acho até que por aguentar tanta coisa nesse filme, ela tenha ficado com sua própria estatueta, porque, convenhamos, sério!, é o mínimo que uma mulher pode receber por um papel assim. A questão é que não havia muito para ela interpretar. Aninora é uma personagem plana, rasa, que disfarça a pouca nuance com gritaria (convenhamos né?, você espera que uma puta faça muitos barracos).
Enquanto isso, Ainda Estou Aqui, Conclave, A Substância, Wicked e Emília Perez trouxeram para o cinema questões de gênero que, lógico, te incomodaram muito. Ainda Estou Aqui não é a história de Rubens Paiva — é a história de Eunice. A mulher que, arrancada de seu marido, precisou recriar a vida, proteger os filhos, lutar por justiça. Emília Perez, apesar das polêmicas (…) trouxe esse corpo-mulher para as telas. E A Substância foi ainda mais longe: escancarou a ditadura da beleza sem sutileza alguma. Inclusive, eu vi você rindo em várias cenas do filme e pensei, meu Deus, que falta de capacidade cognitiva.
Conta pra mim, o que você sentiu no final de Conclave? Com quanta raiva você ficou com Wicked te contando os motivos pelos quais a Bruxa Má do Oeste se tornou má? Ah, eu ouvi o pensamento dentro da sua cabeça dizendo, essa atriz aí até que é boa, mas ela não encaixa.
Fique tranquilo, que hoje não vou tocar o dedo na ferida que Babygirl provocou na maioria dos membros da academia. Não, não vou mesmo! Deixa pra próxima.
O resultado da sua ignorância é A Substância da vida real. Você diz que algumas mulheres até podem pisar no tapete vermelho, mas que elas precisam ter 25 anos, serem brancas, héterocis e um corpinho padrão (seja lá o que isso signifique pra você) para merecerem sua própria estatueta dourada.
Mas, quer saber? Você pode continuar se esforçando para manter tudo como sempre foi. Pode seguir premiando seus próprios espelhos, reforçando suas velhas narrativas, fingindo que o mundo não mudou. Mas a verdade, Patriarcado, é que você está ficando pequeno demais para as histórias que estão sendo escritas.
Pra continuar escrevendo
Se você está passando pela menopausa, escreva. Se é mãe, escreva. Se é preta, indígena, periférica, escreva. Se você não tem filhos, escreva. Se você sangra, escreva. Se você não menstrua, escreva. Se você é mulher, escreva.
Escreva porque cada linha sua é um golpe na estrutura que tenta nos silenciar. Escreva porque sua existência incomoda. Escreva porque, por séculos, tentam nos convencer de que nossas histórias não importam.
Escreva. Com raiva, com amor, com desejo, sem medo. Escreva com a voz trêmula ou com a certeza de um trovão. Escreva o que viveu, o que inventou, o que sonha. Porque não podemos deixar que o patriarcado escreva por nós.
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Por(entre)linhas dessa semana fica por aqui. Eu espero que você continue escrevendo, que não se cale, e que nunca se esqueça: sua voz é a maior resistência possível de oferecer.
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Mabelly Venson é uma matemática que se apaixonou pela escrita. É parteira de livros na Editora Toma Aí Um Poema e autora de “Tudo Que Queima”, “apenas mãe” e “GELO”, obras que focam nas complexidades do ser mulher.