As mentiras que contamos para nós mesmos podem nos paralisar – ou virar histórias.
Ser escritor é, por excelência, ser um mestre na arte de contar mentiras. Manoel de Barros, poeta que transformava o banal em extraordinário, certa vez confessou: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira.”

Nessa matemática poética, percebemos a verdade, se é que existe, escondida entre as linhas, na frestas da imaginação. Nós, escritores, somos tecelões de inverdades, arquitetos de mundos improváveis, paradoxalmentes reais aos olhos de quem lê.
O problema em ser um arquiteto das inverdades, é que muitas vezes levamos isso ao pé da letra. Enquanto o mundo espera pelo 1º de abril para soltar suas mentiras inofensivas, nós as contamos diariamente a nós mesmos. Sussurramos que:
- “Preciso esperar o momento certo para começar.” – “Vou escrever quando me aposentar.” “Quando meus filhos crescerem.” “Quando minha rotina estiver mais tranquila.” A verdade é que nunca haverá um momento perfeito. Se a escrita é importante para você, o melhor momento para começar é agora, mesmo que aos poucos.
- “Meu texto precisa estar perfeito antes de alguém ler.” – Essa é uma armadilha perigosa. O medo da imperfeição pode fazer com que você nunca mostre seu trabalho a ninguém. O processo de escrita envolve revisões, trocas e aprendizado. Seu texto pode (e deve) melhorar, mas ele não precisa nascer perfeito.
- “Ninguém vai querer ler o que eu escrevo.” – Antes de assumir isso, já mostrou para alguém? Muitas vezes, a insegurança fala mais alto do que a realidade. Cada história encontra seus leitores, mas para isso, ela precisa existir e ser compartilhada.
- “Se meu livro for bom, ele se venderá sozinho.” – Infelizmente, não funciona assim. A divulgação é parte do trabalho, mesmo para grandes editoras. Mas não significa que você precise fazer tudo sozinha: há muitas formas de conectar seu livro ao público.
- “Publicar por uma editora independente não é publicar ‘de verdade’.” – A maior parte dos grandes autores começaram assim, e o mercado está cheio de exemplos de sucesso. O que faz um livro ser “de verdade” é ele ser lido e impactar pessoas, independentemente do caminho da publicação.
- “Editoras tradicionais são garantia de sucesso.” – Ser publicado por uma editora tradicional pode trazer visibilidade, mas não significa que o livro será um best-seller automático. Todo autor, precisa se envolver com a divulgação e com sua comunidade de leitores.
- “Já existe um livro parecido, então o meu não tem valor.” – Nenhuma história é exatamente igual à outra. O que faz um livro especial é o olhar único de quem o escreve. Sua voz e sua perspectiva fazem toda a diferença.
- “Não sou escritora de verdade porque não fiz faculdade de Letras.” – A escrita não exige diploma. Escritoras e escritores vêm de todas as áreas e formações. O que define uma pessoa escritora é a prática e a dedicação à escrita, não um título acadêmico.
- “Se meu livro receber críticas negativas, significa que ele é fracasso.” – O medo das críticas pode paralisar, mas todo livro recebe opiniões diversas. Nem todo leitor vai gostar, e está tudo bem. O importante é aprender a diferenciar críticas construtivas de comentários que não agregam.
- “Publicar meu livro será o fim do processo.” – Na verdade, é só o começo. Depois da publicação, vem a fase de divulgar, conversar com leitores, participar de eventos e seguir escrevendo. O livro ganha vida quando chega às mãos do público.
Essas mentiras íntimas nos paralisam mais do que qualquer bloqueio criativo. Mas, talvez, seja hora de finalmente reconhecer que não precisamos viver à mercê dessas farsas.
É hora de desafiar essas ilusões, rir delas e usá-las como combustível para novas histórias. Porque, no fim das contas, ser escritor não é apenas mentir com paixão — é também ter a coragem de desmentir o que nos impede de seguir em frente.
Se você conhece alguém que vive adiando a escrita por causa de uma dessas mentiras, compartilhe este post!
Pra continuar escrevendo
Se mentir é parte da escrita, por que não usar isso a nosso favor? Vamos transformar uma dessas ilusões em narrativa e ver onde ela nos leva?
Exercício: A Verdade Oculta na Mentira
- A mentira que conto para mim mesma
✏️Escreva um parágrafo sobre uma mentira que você conta para si mesmo quando se trata de escrever ou publicar. Pode ser uma das que mencionamos no texto ou outra que venha à sua mente. - A mentira transformada em história
✏️Agora, crie uma cena de ficção e faça essa mentira ser dita por um personagem. Como essa crença afeta a vida dele? Ele a percebe como uma mentira ou acredita nela completamente? - A revelação
✏️Dê um desfecho à cena. O personagem descobre que estava se enganando? Ou continua preso à sua mentira?
📖 Exemplo :
A mentira: “Vou escrever meu livro quando tiver tempo.”
A mentira transformada em história: Cláudia arrumou a casa, lavou a louça, respondeu todas as mensagens no grupo da família, limpou até o cantinho atrás da geladeira, aquele que ninguém nunca vê. Agora sim estava pronta. Sentou-se diante do computador e respirou fundo. Era o momento perfeito, tinha a tarde toda para si, para seu livro. Mas antes, só um cafezinho.
Dez minutos, a asa da xícara presa no dedo. Abriu o documento em branco. Digitou, com orgulho, “Capítulo Um”.
Mas como será que começo? Preciso reler uns clássicos para me inspirar.
Três horas depois, mergulhada em um fórum, defendia que não, Capitu não traiu. O tempo passando, os anos escoando e seu livro no mesmo lugar.
Cláudia brincava que não havia percebido a verdade: tempo não se encontra, se toma. Mas, claro, já tinha uma nova desculpa na manga.
O que estou lendo
Atualmente, estou mergulhada em Meu nome era Eileen, de Ottessa Moshfegh. A narrativa é conduzida por uma narradora com mais de 60 anos, que relembra os tempos em que ela era Eileen, aos 24 anos. Esse “era” no título me deixa mutio curiosa. Será que não é mais? O que aconteceu? Ela matou alguém? Será que ela fugiu e mudou de nome? Sua rotina, permeada por devaneios e fantasias, e apesar da narradora contar uma história, tudo me parece uma grande mentira, porque ela está se mostrando nada confiável. Juro que estou achando que Eillen é sociopata.

Há também uma adaptação do livro para o cinema, lançada em 2023, com Thomasin McKenzie como Eileen e Anne Hathaway. Contudo, decidi adiar o filme até terminar a leitura, para que a experiência com a narrativa original não seja comprometida.
Estou ansiosa para ver como essa história se desenrola e quais segredos e revelações Eileen – e a narradora que a revive – têm para compartilhar.
Por (entre)linhas dessa semana fica por aqui. ✏️ Espero que você encare suas próprias mentiras com curiosidade, transforme algumas em histórias e desminta aquelas que te impedem de seguir escrevendo. Até a próxima!
Mabelly Venson é uma matemática que se apaixonou pela escrita. É parteira de livros na Editora Toma Aí Um Poema e autora de “Tudo Que Queima”, “apenas mãe” e “GELO”, obras que focam nas complexidades do ser mulher.