
Há livros que pedem silêncio. Outros exigem voz.
E há os que explodem. América Xereca pertence a essa última categoria.
Composto como um poema-manifesto, a obra de Eugênia Uniflora — heterônimo literário de Jéssica Iancoski — é uma travessia entre a linguagem e a terra, entre o corpo feminino e o corpo-geográfico da América Latina. A autora transforma o continente em carne viva, em xereca violentada, em Pindorama que sangra, urra e, ainda assim, resiste. A xereca aqui não é símbolo de sexualidade passiva, mas território mítico de origem, centro de poder e de fúria ancestral.
🌋 Poesia decolonial e corpo como geopolítica
Desde os primeiros versos, América Xereca se estrutura como uma crítica direta ao colonialismo — histórico, linguístico, capitalista. A América é tratada como corpo invadido, explorado, dominado:
“américa,
eles xeretam tua xereca
xeretam e enxertam sementes de paus”
A linguagem é explícita, orgânica, carregada de força simbólica. Cada parte do território é lida como carne, fluido, ventre. A floresta é vagina. A mineração, estupro. A monocultura, lavagem de corpo. A poesia se recusa a ser metafórica demais: é crua porque a história também foi.
🧠 Estrutura fragmentária, pulsação contínua
A obra se divide em 26 seções numeradas em algarismos romanos, como se fossem estâncias de um rito litúrgico pagão — uma espécie de evangelho à contra-história da América. O poema é carregado de ritmo e musicalidade, como uma oração escrita a golpes de tambor. Há repetições rítmicas, ruídos tipográficos, fragmentações gráficas e variações de densidade verbal que transformam a leitura em experiência sensorial.
Em certo trecho, lemos:
“parindo e parindo e parindo e parindo e parindo…”
A repetição performa o cansaço, o ciclo de exploração, o tempo da terra que tudo dá — e a violência do homem que tudo tira. O poema é também performance, e não à toa é constantemente recomendado para leitura em voz alta.
🌿 Descolonização da linguagem e reencantamento
Há, também, um gesto claro de recuperação das línguas nativas. O poema termina com uma súplica pela reaprendizagem da língua originária, invocando o tupi moderno:
“ixé ikewára / asuí ixe rurí / ixe ĩdé yawé / asuí açaiçú ĩdé”
(“eu sou daqui / e sou feliz / eu sou como você / e eu te amo”)
Essa escolha final resgata o gesto político de devolver ao território uma fala que não é a do colonizador. É um gesto de cura. De retorno. De reencantamento. É como se o livro dissesse: só sobreviveremos à ferida se reaprendermos a linguagem que a antecede.
✊ Um livro necessário
América Xereca é uma leitura urgente, sobretudo em tempos de apagamento histórico e censura simbólica. É um livro que cruza poesia, denúncia, afeto e insurreição com rara habilidade. O uso de imagens fortes e a feminilização da terra não recaem em essencialismos — pelo contrário, desconstroem visões românticas para escancarar a brutalidade e sugerir novos pactos.
É uma obra que exige do leitor disposição para ser atravessado.
E, ao final, ninguém sai ileso.
📘 Ficha Técnica
• Título: América Xereca
• Autora: Eugênia Uniflora (pseudônimo de Jéssica Iancoski)
• Editora: Toma Aí Um Poema
• Ano: 2023
• Páginas: 72
• Formato: 15 x 15 cm
• ISBN: 978-65-6064-029-0
• Gênero: Poema-manifesto, poesia decolonial, literatura latino-americana