A literatura virou tropa do patrão: sobre listas, vaidades e a falência ética do campo

Estamos testemunhando um fenômeno estranho – e profundamente lamentável – no campo literário brasileiro. Autores que outrora se posicionavam como vozes críticas e alternativas, posando de insurgentes questionadores da ordem, agora apressam-se em defender os interesses das grandes editoras e conglomerados midiáticos como se fossem seus próprios interesses. Em termos de teoria social, poderíamos dizer que esses escritores internalizaram o habitus do poder dominante no campo literário (no sentido bourdieusiano), passando a agir como “tropa do patrão”. Trata-se de um sofisticado puxa-saquismo institucionalizado, travestido de opinião literária independente, mas que na prática ecoa o discurso hegemônico. A defesa entusiasmada e voluntária dos critérios mais rasos de visibilidade (listas de “melhores do ano”, prêmios midiáticos, contratos com gigantes editoriais) virou quase um cargo comissionado imaginário – escritores agindo como porta-vozes não-oficiais do establishment cultural.

Esse alinhamento acrítico atingiu proporções grotescas. Vemos autores emergentes apontando o dedo para editoras pequenas e autores independentes, questionando sua legitimidade e rotulando de “exploração” todo modelo de publicação que foge à lógica dos contratos altos, das listas de jornal ou dos circuitos de prêmio tradicionais – como se qualquer alternativa fora do mainstream fosse intrinsecamente antiética. Em recentes postagens nas redes sociais, um perfil literário influente chegou a alertar escritores iniciantes contra editoras pequenas, descrevendo práticas abusivas de algumas delas (como exigir que o autor compre lotes de exemplares não vendidos na pré-venda e inserir cláusulas de não-difamação no contrato). Sem dúvida, casos assim de editoras vanity press existem e merecem crítica; porém, a generalização implícita – de que fora das grandes casas só há exploração – é perigosa e míope. Essa postura ignora que não se pode pensar em bibliodiversidade sem passar pelas margens do mercado editorial. Ironicamente, o verdadeiro reprodutor histórico da precarização simbólica e material no campo literário sempre foi o centro, os grandes conglomerados com seu domínio econômico-cultural. São eles que concentram poder de decisão sobre o que ganha visibilidade e valor – muitas vezes incorporando e depois descartando autores conforme conveniências mercadológicas.

A sub-elite literária e o ataque às editoras independentes

O mais bizarro nesse processo? Não é a elite estabelecida falando, mas sim uma “sub-elite” literária. Ou seja, autores que ainda não chegaram plenamente ao topo, mas que já incorporaram o discurso de quem está acima. É como se o escritor aspirante a best-seller se tornasse o vigilante voluntário do condomínio fechado da literatura brasileira, segurando o currículo na portaria e dizendo: “Pode deixar, senhor, eu mesmo vigio o portão contra intrusos.” Aqui podemos identificar um fenômeno de hegemonia cultural no sentido gramsciano: os aspirantes absorvem a ideologia dominante na esperança de serem aceitos por ela. Esses autores reproduzem as falas e trejeitos da classe literária dominante, atacando justamente aqueles espaços alternativos que muitas vezes foram responsáveis por revelá-los. Diversos escritores hoje festejados começaram a carreira em editoras independentes ou em publicações marginais. Por exemplo, muitos dos autores brasileiros considerados “os melhores do século 21” primeiro publicaram livros por selos menores, autopublicaram ou saíram por editoras regionais antes de migrar às grandes casas.

Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior, Jefferson Tenório, Ana Martins Marques, Natália Borges Polesso – para citar apenas alguns – iniciaram suas trajetórias em editoras independentes ou projetos alternativos, contribuindo enormemente para a diversidade literária nacional. Ignorar essa realidade e deslegitimar as pequenas editoras é desconhecer o conceito de bibliodiversidade.

No mercado editorial, fala-se justamente na necessidade de bibliodiversidade, isto é, de uma ecologia de projetos editoriais diversos, incluindo os de nicho. Editoras de pequeno porte frequentemente focam em vozes e gêneros que os conglomerados não acolhem, construindo uma identidade editorial própria e atingindo públicos específicos que seriam negligenciados pelas grandes casas. As editoras independentes ampliam o espectro da criação literária, dando espaço para experimentações estéticas e diversidade temática que, não raro, são depois cooptadas pelas editoras grandes. Inclusive, há quem argumente que as grandes casas, ao dominar o circuito de prestígio, frequentemente apropriam-se do capital simbólico produzido por editoras menores – por exemplo, adquirindo direitos de obras já consagradas na cena independente ou contratando autores revelados à margem. Essa “versatilidade” das gigantes em absorver talentos e obras validadas fora do seu catálogo evidencia como o centro depende das margens para se renovar, ainda que oficialmente desdenhe dessas experiências.

Por isso soa tão contraditório ver escritores sub-elite atacando pequenas editoras em nome de uma suposta “ética” ou “proteção” do autor. Claro, é legítimo denunciar práticas abusivas de vanity press (como cobrar para publicar) – porém, transformar todo um segmento alternativo em bode expiatório, enquanto se exalta tacitamente o grande conglomerado que paga adiantamentos e põe livros em listas, é distorcido. Esse comportamento serve como conveniente racionalização para endossar o status quo: implica que legítimo mesmo é publicar pelo grande grupo empresarial, que “valoriza o autor” – esquecendo-se de que, nas grandes editoras, a maioria dos escritores também recebe adiantamentos modestos ou nulos, tiragens pequenas e retorno financeiro irrisório. (Em média, livros no Brasil têm tiragem de apenas ~3 mil exemplares; com royalties de 10%, isso raramente sustenta alguém). Ou seja, a precarização do trabalho autoral não é exclusividade das pequenas editoras – ela é sistêmica. A diferença é que o brilho do selo famoso e a validação por prêmios e listas conferem um capital simbólico que muitos consideram mais valioso que retorno material. Nesse sentido, os autores que atacam as margens parecem dizer: “Prefiro ser explorado pelo gigante (com prestígio) do que arriscar o obscuro”.

Listas, prêmios e o jogo do capital simbólico
A complacência com a estrutura vigente fica mais evidente quando surgem as famosas listas de “melhores do ano/século” e premiações literárias. Nesses momentos, assiste-se a um espetáculo de bajulação mútua no campo literário, pouco relacionado à crítica substantiva ou à relevância estética. As listas tornaram-se moedas de troca: quem entra celebra efusivamente, quem fica de fora converte a frustração em silêncio amargo ou acusações veladas de injustiça. Como já observaram analistas da cultura, qualquer gesto vira moeda, qualquer elogio vira capital simbólico. Pierre Bourdieu notaria que aqui o que está em jogo é o capital simbólico e sua conversão em posição no campo: figurar na lista rende prestígio que pode ser convertido em convites, vendas e autoridade. Enquanto isso, a ausência em listas por vezes é tratada quase como deslegitimação pública do escritor ignorado – gerando linchamentos morais nas redes (leitores e colegas cobrando “por que fulano não foi incluído?”, insinuando discriminação).

Importa destacar que essas listas dizem tanto sobre quem as produz quanto sobre os escolhidos. Listas de jornais são reveladoras de quem faz o cânone, consolidando gostos e posições de poder, com critérios autocráticos que impõem uma voz de autoridade. Ou seja, por trás da suposta objetividade cultural (“os melhores livros”) esconde-se a subjetividade de um grupo de influentes. Muitas vezes, os votantes dessas listas pertencem às mesmas redes de sociabilidade literária – reforçando afinidades editoriais e diplomacias culturais pré-existentes. Assim, as listas informam e deformam ao mesmo tempo, pois moldam o gosto das futuras gerações enquanto reforçam distorções do presente. A recente e polêmica lista dos “25 livros mais importantes do século 21” do jornal Folha de São Paulo ilustra bem isso: dos 25 selecionados, nada menos que 22 (88%) eram publicados por grandes grupos editoriais, sendo 18 apenas de uma única editora, a Companhia das Letras. E não por acaso – a própria Folha possui uma relação histórica de proximidade com essa casa editorial, compartilhando “afinidades eletivas” estéticas e de conteúdo. Esse resultado evidencia uma hegemonia cultural e econômica preocupante: a concentração de tantos títulos sob um só logotipo e a centralização em um único eixo (São Paulo) reduzem drasticamente a bibliodiversidade do panorama consagrado. Quando uma só casa domina o processo de validação literária, excluímos expressões políticas e culturais da diversidade. Em outras palavras, a lista celebrada acaba silenciando projetos editoriais diversos, validando a ideia equivocada de que relevância literária é sinônimo de presença nas vitrines do grande mercado. É sintomático, portanto, que tantos escritores hoje estejam mais preocupados em garantir lugar nessas listas e vitrines do que em questionar os mecanismos por trás delas. O comportamento padrão passou a ser: se for incluído, postar um reel vibrando de gratidão (“a honra de estar nessa lista com pessoas tão incríveis ❤️”), marcando todos os colegas e a editora; se ficar de fora, manter a cabeça baixa para não se queimar – ou então engrossar o coro contra algum terceiro alvo conveniente (como certa vez as “múmias empoeiradas” da literatura, ou as tais editoras pequenas “exploradoras”). Em ambos os casos, a crítica literária de verdade sai perdendo: ou é substituída por aplausos protocolares e auto-promoção, ou por ressentimento difuso. Pouco se discute estética, forma, inovação – discute-se quem subiu ao pódio e quem ficou de fora.

Comportamento e marketing acima da invenção estética

Uma das consequências mais nocivas desse clima é a anestesia completa do pensamento literário no debate público. Forma virou motivo de piada; radicalidade estética, quando aparece, é tachada de “pedantismo”; experimentalismo virou sinônimo de “egocentrismo”. O que se espera do autor contemporâneo não é mais coragem criativa, nem arrojo de linguagem, nem invenção formal – e sim comportamento adequadamente alinhado. Espera-se que o escritor seja um agente impecavelmente comportado no jogo social: que repita as pautas do dia, exiba as virtues corretas, não incomode ninguém com ideias dissonantes. Em suma, espera-se que seja também um influencer, capaz de produzir conteúdo engajável, participar de lives e desafios, “comunicar-se” nas redes com leitores de forma constante e palatável. O mercado editorial, enfrentando mudanças e crises, cada vez mais valoriza autores que “sabem se vender” – não por acaso, o número de escritores-celebridades e projetos de marketing pessoal para autores só cresce. Há cursos e manuais ensinando escritores a bombar seus perfis no Instagram e TikTok, integrando-os na lógica da atenção contínua. Alguns grandes grupos preferem assinar contrato com quem já traz consigo milhares de seguidores, mesmo que a qualidade literária seja questionável, pois isso garante vendas rápidas. Assim, presença no feed vira sinônimo de talento – uma perversão reducionista, mas conveniente.

Esse condicionamento influencia até o conteúdo da escrita. Se uma obra traz alguma carga polêmica ou estética muito fora da curva, editores e autores temem rejeição nas redes; melhor aparar as arestas com “filtros” de aceitabilidade. Temos então livros e autores cheios de filtros, vestidos para a foto, cuidadosamente editados para não desagradar comunidades digitais ou críticos de plantão. A literatura, que em essência deveria poder desacomodar, tensionar, provocar reflexões incômodas, acaba muitas vezes se tornando um simulacro de si mesma: segura, formulaica, calculada para maximizar aprovação. Em termos frankfurtianos, poderíamos dizer que a lógica da indústria cultural assimilou a literatura: transforma obras em produtos padronizados e writers em marcas personalizadas. A consequência é uma homogeneização perigosa – “a repetição em escala industrial do mesmo modelo, da mesma linguagem, da mesma paleta estética”, como já se apontou em críticas ao mercado. Os autores que fogem dessa moldura tendem a ser ignorados ou relegados à etiqueta de “casos exóticos” ou outsiders. A dissonância não encontra acolhida, pois o sistema prefere acusar de “problemático” quem questiona a ordem vigente, a ter que revisar a si mesmo.

O fetiche das listas e o cânone do marketing

Importa frisar: o problema não é uma lista em si, e sim o fetiche generalizado pela listagem e pelos rankings como validação última da literatura. Há uma noção equivocada de que o cânone literário contemporâneo pode (ou deve) ser forjado no departamento de marketing, ou definido nas redações dos jornais, de forma instantânea e periódica. Essa concepção ignora que a história da literatura se escreve em temporalidades longas e debates críticos amplos, não em enquetes apressadas ou campanhas promocionais. O fetichismo das listas reflete a pressa em transformar qualquer gesto cultural em capital imediato. Um prêmio literário ou lista que deveria estimular discussão estética vira troféu para estampar capa e turbinar vendas – um selo de qualidade às vezes conferido por critérios opacos ou apressados. A dominância de um só grupo, como a Companhia das Letras, nas listas e prêmios é um sintoma de distorção e isso não é saudável. Não que os livros laureados sejam necessariamente ruins – muitos merecem os holofotes, sem dúvida. O ponto é que, quando falamos “da lista”, não estamos falando só da lista: estamos falando de um sistema que converte prestígio cultural em poder mercadológico e vice-versa, muitas vezes sufocando a pluralidade em nome de uma visibilidade concentrada. Nesse sistema, qualquer ausência na lista torna-se uma mancha (daí a suscetibilidade a “linchamentos” e cobranças), e qualquer inclusão vira moeda de troca (daí a bajulação exagerada). A lógica é clara: quem entra celebra; quem fica de fora é apontado como o problema.

Esse círculo vicioso alimenta a falência ética generalizada no campo literário. Muitos autores, críticos e agentes se tornaram – consciente ou inconscientemente – defensores fervorosos da manutenção da estrutura atual, porque dela extraem algum dividendo (simbólico ou material). Assim, retroalimenta-se o poder do mesmo circuito fechado de grandes editoras + mídia + premiações, enquanto vozes dissonantes são anestesiadas. A literatura brasileira passa a lembrar uma vitrine de shopping: bem iluminada, repleta de produtos chamativos, mas absolutamente implacável com o que não tem apelo comercial imediato – o que não “vende” simplesmente some da vista. Livros que não entram nos esquemas comerciais desaparecem dos debates, recebem zero resenhas, são ignorados inclusive nas políticas públicas de aquisição. E muita gente finge que está tudo bem, deslumbrada pelos recordes de vendas de meia dúzia de títulos ou pela presença midiática de dois ou três autores “pop”.

Reagindo à necrose do campo literário

É hora de encarar o problema de frente e fazer um corte de verdade. Precisamos separar a crítica literária da vaidade pessoal, a criação artística da performance para algoritmos, a escrita da bajulação institucional. É preciso parar de fingir que o campo está saudável quando, na verdade, está necrosado por dentro por esses jogos de aparências. Em termos acadêmicos, seria desejável resgatar a autonomia do campo literário (como defendeu Bourdieu) – ou seja, valorizar critérios internos de qualidade, inovação e profundidade, em vez de submeter tudo ao veredito do mercado e da mídia. Implica devolver prestígio à figura do crítico independente, do editor artesanal, do autor que arrisca novos caminhos sem garantias de aplauso imediato. Significa também repensar políticas culturais para apoiar a bibliodiversidade: fortalecer pequenas editoras sérias, coibir práticas abusivas (estas sim devem ser denunciadas e combatidas) sem demonizar as margens honestas, e incentivar a circulação de obras fora do eixo comercial.

Sobretudo, é hora de os escritores lembrarem por que escrevem. A literatura que vale a pena não se constrói lambendo as botas do patrão, mas sim pisando firme no terreno da linguagem – mesmo quando esse chão treme e incomoda. Como bem disse certa vez um grande poeta, “a arte verdadeira não é confortável”. O autor que se preza não pode ter medo de desagradar ou de ficar fora da lista do mês; seu compromisso deve ser com a potência estética e a honestidade intelectual. Recuperar esse ethos talvez soe utópico num ambiente tão contaminado por vaidades e cifras. Mas é precisamente em momentos de crise ética que a insurgência se faz mais necessária. A literatura brasileira precisa voltar a tensionar, provocar e desacomodar, em vez de se acomodar nos tapetes vermelhos do mercado. Somente assim escaparemos dessa lógica servil de tropa do patrão e reafirmaremos a autonomia, a diversidade e a integridade do fazer literário – valores sem os quais o cânone de amanhã corre o risco de ser apenas um espelho do departamento de marketing de hoje.

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