
A poesia concreta ganhou força no Brasil em meados dos anos 1950, liderada pelo trio paulistano Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Esses poetas propunham uma ruptura radical com a poesia tradicional, buscando novas formas de expressão que valorizassem os aspectos visuais e sonoros das palavras em vez do verso linear convencional. Em seu manifesto “Plano-Piloto para Poesia Concreta” (1958), declararam encerrado o ciclo do verso clássico (com métrica e rima) e elevaram o espaço gráfico da página ao status de agente estrutural do poema. Ou seja, o arranjo das palavras no papel passou a ser tão significativo quanto o sentido lexical, transformando o poema em uma construção visual e espacial, além de verbal.
Algumas características definiram essa vanguarda concretista brasileira:
- Uso do espaço gráfico como estrutura: O branco da página e a disposição das palavras passam a compor a poesia. A leitura já não é apenas linear-horizontal; elementos como quebras, espaçamentos e alinhamentos tornam-se parte do significado.
- Palavra como objeto visual e sonoro: Os concretistas tratam a palavra simultaneamente como som, imagem e sentido, num todo integrado que Augusto de Campos chamou de entidade “verbivocovisual”. Assim, o poema concreto é concebido como um objeto autônomo, um organismo verbal que comunica sua própria estrutura, em vez de descrever paisagens ou sentimentos do eu-lírico.
- Economia e síntese: Há uma forte redução vocabular – privilegiando poucas palavras ou mesmo fragmentos de palavras – para concentrar múltiplos significados em mínimos elementos. Essa síntese condensa significados amplos em formas breves e impactantes.
- Experimentação tipográfica: Os poetas concretos lançaram mão de fontes variadas, layouts inusitados, neologismos e justaposições inesperadas de termos. Recursos tipográficos tornaram-se parte do conteúdo: por exemplo, maiúsculas, quebras abruptas, ausência de pontuação tradicional – tudo para criar novos efeitos de leitura.
- Ausência de narratividade e subjetividade direta: Diferentemente da poesia lírica tradicional, a poesia concreta evita “contar uma história” ou descrever emoções pessoais de modo direto. O manifesto afirmava que o poema concreto “não interpreta objetos exteriores nem sensações subjetivas”, pois é “um objeto em si mesmo” feito de relações entre palavras. Em vez de transmitir uma mensagem linear, ele propõe uma experiência cognitiva e sensorial ao leitor, frequentemente aberta a múltiplas interpretações.
Os primeiros poemas concretos brasileiros exemplificaram esses princípios de forma marcante. Décio Pignatari, por exemplo, criou o célebre poema “Beba Coca Cola” (1957), em que as palavras da famosa marca de refrigerante são dispostas em forma de diagonal descendente, sugerindo visualmente o líquido escorrendo e simultaneamente criticando a influência consumista americana. Já Augusto de Campos explorou jogos de palavras e formas geométricas – como em “LUXO” vs “LIXO”, em que a troca de uma letra transforma “luxo” em “lixo”, conectando visualmente ideia e crítica social. Esses trabalhos inaugurais mostraram que poesia podia ser também design gráfico e performance sonora impressa no papel.
Concreto Imaginário: Diálogo e Continuidade da Tradição Concretista
Publicada em 2024, a coletânea Concreto Imaginário, do poeta contemporâneo Surian dos Santos, declara já em seu título a intenção de dialogar com aquela tradição. Trata-se de um livro de poemas curtos e visuais, explicitamente inspirado na poesia concreta, explorando “a mancha gráfica no papel” e as dimensões visuais e sonoras da linguagem. Surian, portanto, posiciona-se como herdeiro dessa estética, recuperando muitos de seus procedimentos formais e atualizando-os no contexto do século XXI.
Do ponto de vista formal, nota-se uma clara continuidade de diversos elementos clássicos da poesia concreta:
- Exploração do espaço gráfico: Surian compõe poemas em que a disposição das palavras e letras pelo espaço branco é fundamental para o sentido. Por exemplo, em um poema do livro a palavra “cachoeira” aparece fragmentada verticalmente em letras distribuídas para baixo – “ca / c / h / u / á / choeira” –, evocando visualmente a queda d’água de uma cachoeira. Não se trata apenas de ler a palavra cachoeira, mas de “ver” a cachoeira na maneira como o texto cai na página, tal como os concretistas originais faziam ao pintar imagens com palavras (remetendo aos caligramas de Apollinaire e ao uso de layout como significado, como preconizado no manifesto concretista). Outro exemplo: um poema de Concreto Imaginário dispõe a palavra “lado” em formato de quadrado, espelhando-se nas quatro direções. O texto diz “tão quadrado que não vê o outro lado” e, logo abaixo, a própria palavra lado se desenha num quadrado perfeito, com lado escrito na horizontal e vertical simultaneamente. Essa solução visual remete diretamente à tradição concretista de dar forma gráfica ao conteúdo: aqui, a mentalidade quadrada (fechada) é representada por um quadrado literal de letras, e “o outro lado” que o quadrado não enxerga está materializado na face oposta da figura.
- Sinteticismo e impacto semântico: Assim como os pioneiros dos anos 50, Surian privilegia poemas muito concisos – muitas vezes de apenas uma ou duas linhas ou palavras – que concentram significado de forma densa. Segundo a prefaciadora Nathália Lima Verde, o encanto de sua poesia está justamente “no contraste entre a síntese da escrita e a grandeza dos seus significados”. Essa característica vem diretamente da estética concretista: eliminar o supérfluo e carregar cada palavra (ou letra) de múltiplas funções. Por exemplo, Surian escreve: “sem ti / s e n t i”. Com apenas essas duas linhas, ele condensa uma ideia lírica profunda – a ausência de “ti” (você) torna-se “senti” (sentimento, dor da falta) – num jogo gráfico e sonoro mínimo. Esse pequeno poema lembra construções concretistas como o “LUXO/LIXO” de Augusto, em que uma única letra muda todo o sentido: aqui, a simples ausência do espaço entre “sem ti” gera “senti”, unindo forma e conteúdo de modo econômico e inteligente.
- Palavra como som e jogo fonético: No livro Concreto Imaginário, muitas peças exploram aliterações, rimas internas e trocadilhos sonoros – uma dimensão já cara aos concretistas originais, que viam o poema também como partitura verbal. Surian, contudo, o faz de maneira lúdica e acessível. O prefácio aponta que “rimas acessíveis e humor sutil funcionam como um convite” ao leitor. Por exemplo, ele escreve “Pinto palavras por puro prazer”, frase em que quase todos os termos começam com “P”, dando um ritmo aliterativo que torna o verso memorável e brincalhão. Em outra página, brinca com a sonoridade similar de “amar” e “mar”: através de simetrias, o poema mostra as frases “o mar acaba / amar acalma / amar acaba / o mar acalma / a alma” – apresentando um ciclo em que amar e mar se entrelaçam sonicamente, compondo uma espécie de mantra visual e auditivo (com amar no centro literalmente “acalmando” mar e alma nas extremidades). Esse tipo de eco sonoro e circularidade verbal é um tributo às experimentações dos anos 1950, que já valorizavam a musicalidade intrínseca das palavras e a repetição cíclica (como nos poemas “Dias dias dias” e outros exercícios rítmicos de Haroldo de Campos). Surian mantém viva essa preocupação verbivocal: seus poemas “pedem para ser lidos em voz alta” tanto quanto admirados visualmente – honrando o ideal concretista do poema verbivocovisual, feito de palavra-imagem-som.
- Trocadilhos e ambiguidade semântica: Tal qual Augusto, Haroldo e Décio, que adoravam os jogos de duplo sentido, Surian constrói poemas a partir de sobreposição de significados. Destaca-se o caso de “amarcura” versus “amargura”. No papel, Surian aproxima essas duas palavras quase idênticas, diferindo por uma letra, de modo que o olho perceba imediatamente a relação: amargura (a tristeza, “amargo”) se transforma em amarcura – neologismo que sugere “cura pelo amar”. Nesse jogo tipográfico, a troca do g por c opera a mágica: do amargor nasce o amor que cura. É uma solução engenhosa que ecoa invenções dos concretistas originais (como a troca de L por X em LUXO/LIXO, ou de C por G em “ato”/“algo” em poemas de Augusto) para produzir crítica e lirismo simultaneamente. Aqui, Surian consegue condensar em poucas letras uma mensagem otimista: o antídoto para a amargura está no ato de amar – tudo isso sem explicitar em discurso, mas deixando que a forma gráfica sugira o sentido. Essa preferência por “dizer sem dizer”, pelo insight que emerge da leitura visual, é profundamente concretista.
- Visualidade e efeito ideogramático: Os poemas de Concreto Imaginário frequentemente se estruturam como ideogramas, nos quais a posição dos termos cria significado por justaposição, não por sintaxe linear – exatamente o que os concretos pregavam inspirados na poesia japonesa e na ideia de montagem cinematográfica de Eisenstein. Surian mostra isso em composições como o poema onde repete a sequência “CONFLITOREFLITO” em colunas. Ao colar as palavras conflito + reflito numa só, ele visualiza a íntima ligação entre conflito e reflexão (sugere-se que para cada conflito, uma reflexão se impõe); e a repetição múltipla dessa nova palavra-valise gera na página um padrão quase gráfico, refletindo a natureza persistente dos conflitos e reflexões. Esse procedimento de fusionar termos e serializar repetições possui antecedentes nos concretos (Décio Pignatari, por exemplo, unia “terra” e “errará” em “Terrará”; os concretos também repetiam mantras verbais, vide “vai e vem” em poemas de Augusto). Surian demonstra, assim, total domínio desses dispositivos legados pela tradição, empregando-os para criar novos sentidos pertinentes ao seu universo.
Em resumo, Concreto Imaginário apresenta uma série de poemas que poderíamos facilmente imaginar nas páginas de uma revista concretista dos anos 50, tamanha a afinidade formal e estética. O próprio autor reconhece essa filiação ao intitular a primeira seção do livro de “Concreto Imaginário”. De fato, os exemplos acima deixam claro que Surian dá prosseguimento à linhagem da poesia concreta brasileira, preservando sua essência experimental: o poema como construção visual-sonora, a palavra enquanto matéria-prima autossuficiente, e o leitor convertido em decifrador ativo de enigmas poéticos.
Reinterpretações e Rupturas: Novos Olhares no Contexto Contemporâneo
Se por um lado Surian dos Santos rende homenagem explícita à tradição concretista, por outro ele reconfigura essa poética para ajustá-la ao contexto contemporâneo e à sua sensibilidade pessoal. Concreto Imaginário não é mera cópia dos poemas dos anos 50; ele dialoga criticamente, introduzindo elementos de continuidade, mas também inversões, expansões e quebras em relação à estética original. Vejamos algumas das principais reinterpretações e rupturas promovidas por Surian:
- Reintrodução de lirismo e subjetividade: Um aspecto marcante em Concreto Imaginário é a presença de um fio lírico-humanista que os concretistas pioneiros tendiam a evitar. Enquanto o manifesto de 1958 postulava que o poema concreto não deveria ser “intérprete de… sensações subjetivas”, Surian frequentemente carrega seus poemas de um subtexto emotivo ou reflexivo ligado à experiência humana. Muitos de seus versos, apesar de construídos de forma objetiva, comunicam reflexões sobre a vida, o tempo, a natureza e os afetos. Conforme observado no prefácio do livro, “tantos poemas do livro expressam a intimidade do artista com a natureza” e iluminam “a beleza das miudezas… que habitam as entrelinhas”. Essa ênfase na contemplação da natureza, no valor das pequenas coisas e na emoção contida é algo que se distancia da impessoalidade cerebral dos anos 50. Por exemplo, um poema de Surian diz: “o perdão mais que a lembrança costura a nossa distância” – uma frase curta, com leve jogo de palavras, mas carregada de sentimento de saudade e reconciliação. Aqui não há apenas estrutura; há uma mensagem humana sobre mágoa e perdão. Do mesmo modo, seus haikais (incluídos em uma seção do livro dedicada à forma japonesa) falam de brisas, rios, estrelas e chuvas, compondo imagens de lirismo sutil e melancolia. Esse retorno de um eu sensível nas entrelinhas representa uma ruptura delicada com a ortodoxia concretista, aproximando Surian de uma poesia pós-concreta mais calorosa e subjetiva – embora ainda filtrada pelos processos concisos e lúdicos herdados do concretismo. Vale notar que Augusto de Campos e outros, em fases posteriores de suas carreiras, também reincorporaram certo lirismo em obras experimentais; Surian amplifica esse movimento, equilibrando cabeça e coração em seus poemas.
- Humor e acessibilidade como elemento estético: Surian parece empenhado em convidar o leitor comum ao jogo poético, enquanto a poesia concreta original muitas vezes tinha um ar mais hermético ou excessivamente vanguardista. No prefácio, salienta-se que suas “rimas acessíveis e humor sutil” funcionam como um convite, um flerte, uma isca que atrai o leitor para dentro dos poemas. De fato, Concreto Imaginário traz diversos poemas espirituosos, quase epigramáticos, que provocam um sorriso no leitor assim que ele percebe o truque. Por exemplo, Surian escreve: “vim sem par, vem com igo¿” – onde propõe, com um trocadilho e uma interrogação invertida de cabeça para baixo, algo como “vim sozinho, vem comigo?”. O efeito é lúdico e imediato, causando humor e empatia. Outro poema diz: “quem conta os dias sofre mais”, colocado sob uma matriz de números que lembram um calendário bagunçado – uma forma bem-humorada de criticar a ansiedade moderna em contar o tempo. Os concretistas dos anos 50 também usaram humor (especialmente Décio Pignatari, cujo Beba Coca Cola tinha ironia ácida, e Haroldo em certos poemas gráficos jocosos), mas Surian adota um humor de tonalidade mais leve e cotidiana. Ele parece buscar uma comunicação mais amigável com o leitor, sem perder a inteligência, enquanto os originais às vezes sacrificavam a clareza em nome da experimentação radical. Essa orientação pode refletir o espírito contemporâneo de democratizar a poesia, tornando-a apreciável por públicos diversos – alinhando-se inclusive com o fato de Concreto Imaginário ter sido publicado por uma editora (TAUP) engajada em divulgar novos autores e tornar a poesia mais próxima das pessoas. Surian, como educador, terapeuta e mediador, traz para sua obra um viés acolhedor e lúdico, quase pedagógico, que reinterpreta a vanguarda concretista numa chave menos combativa e mais empática.
- Diálogo com formas tradicionais e cultura popular: Uma contribuição original de Surian é integrar ao universo concreto referências a formas poéticas clássicas e à sabedoria popular, algo que os concretistas canônicos não exploraram. No livro, há seções inteiras dedicadas a “Provérbios antigos de tempos futuros” e haikais, nas quais Surian recria ditados populares e segue a disciplina do haicai japonês. Por exemplo, ele menciona que os provérbios foram inspirados em falas de sua avó Mary, repletas de simplicidade e sofisticação. Um desses poemas diz: “nem tudo que aflora é flor” – uma clara recriação do ditado “nem tudo que reluz é ouro”, adaptado ao universo das flores, combinando sabedoria tradicional com um toque poético. Ao fazer isso, Surian rompe com o elitismo intelectual da poesia concreta original (que se alimentava de referências eruditas – de Mallarmé a Pound – e se comunicava muitas vezes à margem da cultura popular). Ele populariza em certa medida a forma concreta, sem banalizá-la, ao aplicar seus métodos a temas e ditados do cotidiano. Do mesmo modo, ao escrever haikais minimalistas sobre a natureza, Surian funde a estética oriental milenar (que valoriza a contemplação e a brevidade) com a brevidade concreta. Um de seus haikais, por exemplo, observa: “frescor da manhã / nem brisa nem ventania / só chá de hortelã” – três versos que caberiam numa antologia de haicais, mas que dialogam com a visão concreta na concisão imagética e na ausência de verbos supérfluos. Essa síntese de tradição e vanguarda é uma inovação de Surian: os concretistas dos 50 rejeitavam o passado literário em prol do novo, ao passo que Concreto Imaginário mostra que é possível reverenciar tradições (provérbios, haicais) e, ainda assim, produzir poesia experimental. Surian expande o repertório temático da poesia concreta, incluindo camadas culturais brasileiras (a voz da avó, o sabor do chá, as expressões coloquiais) que a tornam mais enraizada na experiência do leitor comum de hoje.
- Influências do contexto digital e da cultura visual contemporânea: Escrevendo no século XXI, Surian naturalmente incorpora em sua prática poética recursos e sensibilidades que não existiam nos anos 1950. Uma diferença notável está em certos elementos gráficos e simbólicos recentes que ele utiliza. Por exemplo, ele emprega caracteres invertidos e espelhados – como ꓷ, И, Я (derivados de alfabetos ou símbolos Unicode) – para criar visualmente a ideia de verso invertido em um poema sobre o “reverso do verso”. Essa facilidade de usar caracteres especiais é fruto da era digital (os poetas concretos originais estavam limitados às fontes tipográficas disponíveis em tipos móveis ou na máquina de escrever). Surian também chega a inserir um símbolo de emoji (duas luas novas pretas) em um haikai sobre a escuridão da noite – algo impensável na década de 1950, mas totalmente inserido na linguagem contemporânea. Esses recursos indicam como a tecnologia e a cultura visual atual ampliaram as possibilidades da poesia visual: hoje o poeta tem à disposição uma paleta enorme de símbolos, cores (no caso de mídias digitais) e pode divulgar seu trabalho em formatos gráficos digitais facilmente. Concreto Imaginário, embora seja um livro impresso, reflete essa influência – notadamente, Surian divulga poemas também em redes sociais como Instagram, levando adiante a poesia concreta para plataformas virtuais. Assim, há uma diferença de suporte e circulação: o que na década de 50 era vanguarda restrita a revistas literárias mimeografadas, hoje pode ganhar viralidade na internet. Surian faz parte de uma geração que reinsere a poesia visual no feed do Instagram e nos slams contemporâneos, tornando-a novamente relevante. Essa recontextualização é, em si, uma ruptura de paradigma: a poesia concreta deixa de ser apenas um capítulo da história literária para tornar-se uma linguagem viva adaptada ao novo milênio.
- Dimensão temática contemporânea: Por fim, vale destacar que Surian traz à poesia concreta temas e inquietações próprias do século XXI, reconfigurando o escopo da “poesia objetiva” para abarcar questões atuais. Seus poemas refletem, por exemplo, uma preocupação com o tempo presente acelerado (há vários aforismos sobre tempo, espera, impaciência), com a fragmentação da atenção (“você não veio de tão longe para dizer qualquer coisa” repete ele dezenas de vezes em um poema, numa possível crítica à banalidade do discurso em tempos de excesso de informação) e com a necessidade de reconexão humana e ambiental. Isso denota uma diferença de enfoque: os concretistas originais viviam o auge do otimismo desenvolvimentista e da modernidade industrial (Brasília sendo construída, a crença no progresso científico), ao passo que Surian escreve em um momento de pós-modernidade, de questionamento desse progresso e busca de novos valores (vide sua atuação profissional voltada a “culturas regenerativas” e comunicação não-violenta, mencionadas em sua biografia). Esses valores permeiam seus textos poeticamente. Por exemplo, ao fundir conflito e reflexão em “CONFLITOREFLITO”, Surian deixa entrever sua visão de mundo conciliadora. Ao afirmar em outro poema “modernidade sem credo / concreto”, ele sugere uma crítica ao vazio espiritual da modernidade, fazendo um trocadilho onde “concreto” alude tanto à realidade material quanto ao movimento concretista que ele reconfigura. Desse modo, Concreto Imaginário realiza uma atualização temática da poesia concreta: continua a ser verbo, visibilidade e som – porém a serviço de um novo contexto histórico, filtrando angústias e esperanças contemporâneas que os pioneiros não poderiam ter antecipado.
Conclusão
Concreto Imaginário, de Surian dos Santos, é um rico exemplo de como a poesia concreta brasileira, seis décadas após seu surgimento, permanece fértil e em transformação. O livro estabelece um diálogo histórico-estético explícito com a tradição inaugurada por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari nos anos 1950, recuperando os procedimentos formais fundamentais daquela vanguarda – a disposição espacial das palavras, a experimentação tipográfica, a síntese verbal, o jogo semântico-sonoro – e demonstrando a força duradoura dessas invenções. Ao mesmo tempo, Surian imprime na página a marca de sua contemporaneidade: reinterpreta a poesia concreta com doses de lirismo, humor, referências culturais locais e preocupações atuais, operando tanto continuidades quanto rupturas em relação ao cânone concretista. O resultado é uma poesia que dialoga com o passado (honrando os ideais “verbivocovisuais” e ideogramáticos originais) e se projeta no presente, acessível e instigante para o leitor de hoje.
Pode-se dizer que Surian dos Santos expande o legado concretista ao demonstrar que seus princípios não são um dogma estático, mas um campo de possibilidades aberto à inovação pessoal. A tradição da poesia concreta brasileira ganha, em Concreto Imaginário, um tributo vivo e renovado: há continuidades evidentes, como as formas gráficas precisas e a inteligência verbal que celebra a imperfeição, e há novas cores nessa paleta – a ternura, a espiritualidade, o olhar ecológico e o diálogo com o leitor comum. Concreto Imaginário mostra, enfim, como a poesia concreta evoluiu de um movimento de vanguarda dos anos 50 para uma poética contemporânea plural, capaz de incorporar o imaginário (imaginário no sentido de criatividade sem limites) sem perder a concretude (o rigor formal e a materialidade da palavra). Surian entrega um ensaio poético em forma de livro, onde passado e futuro da poesia concreta se encontram: um espaço em que Concreto e Imaginário dançam juntos, celebrando tanto a estrutura quanto a utopia. É nessa dança – de forma e transcendência – que reside a contribuição singular do autor: reafirmar a poesia concreta como uma arte sempre em movimento, reinventada a cada nova leitura e criação.