Camila Passatuto: o corpo da palavra e a torção da linguagem

A escritora Camila Passatuto, nascida e residente em São Paulo (SP), é autora de Nequice: Lapso na Função Supressora, livro finalista do Prêmio Jabuti 2019 na categoria Contos. Sua escrita atravessa o corpo e o desconforto, criando uma prosa poética que experimenta o som, o ritmo e o limite das palavras.

Entre o urbano e o íntimo, o hospitalar e o poético, Camila constrói narrativas que provocam o leitor a sentir, antes mesmo de compreender. Sua obra é, ao mesmo tempo, rasura e pulsação.


Da infância silenciosa ao grito da escrita

A relação de Camila com as palavras começou de forma paradoxal: na infância, o silêncio. Ela conta que, quando criança, quase não falava — os sons, os significados e a própria estrutura da linguagem lhe pareciam complexos e distantes. Ainda assim, cercada por livros, músicas e estímulos, encontrou nas palavras um abrigo.

Por volta dos oito anos, aprendeu a decorar o “desenho” das palavras e o som exato de cada sílaba, criando sua própria forma de sobrevivência escolar. Aos onze, um episódio marcante: ao descobrir que a escola doaria livros didáticos antigos, levou dezenas deles para casa. Esse gesto, simples e simbólico, inaugurou sua primeira biblioteca — e um amor profundo pelos livros.

Foi também aos onze anos que a escrita se tornou um exercício de fluência e descoberta. Um erro de capa a fez conhecer Shakespeare e, com ele, a emoção da palavra performática. Desde então, escrever passou a ser não apenas expressão, mas também movimento, torpor e libertação.


Entre blogs e prêmios

Na adolescência, Camila encontrou nos blogs um espaço de partilha. A partir de 2007, começou a publicar textos e a participar de antologias e revistas literárias. Em 2017, lançou seu primeiro livro, TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada, de prosa poética, abrindo caminho para o segundo, Nequice: Lapso na Função Supressora (2018), que a levaria à final do Prêmio Jabuti no ano seguinte.

A pandemia, no entanto, trouxe rupturas. A autora adoeceu de COVID-19 e enfrentou sequelas que afetaram a memória e a capacidade de escrita. Hoje, ela descreve o ato de escrever como uma luta para tirar de dentro páginas que continuam “explodindo no peito”.


As referências e a pulsação da escrita

Entre suas influências, estão Kafka, Clarice Lispector, Cortázar, Augusto dos Anjos, Shakespeare, Maiakovski, Cecília Meireles, Gabriela Mistral, André Breton, Rimbaud e Guimarães Rosa — nomes que revelam sua convivência entre o delírio poético e o rigor formal.

Em seus textos, Camila explora sinestesias, violência, opressão, libertação, o ambiente urbano e industrial, o feminino como ruptura, além dos espaços hospitalares e manicomiais e suas figuras. A palavra, em sua escrita, é recurso de espanto e carne. É matéria viva.


Nequice: a torção como estética e gesto

Nequice: Lapso na Função Supressora nasce do livro anterior, TW, que ela define como “feito da violência crua, sem rodeios”. Nequice é, segundo Camila, o vazamento dessa violência, o que escorre depois do impacto.

A palavra que melhor traduz a obra, para ela, é torção — um movimento físico e simbólico que expressa deformação e beleza. “Leio e sinto o torcer de algo: a deformação como mãe do belo”, diz a autora. O escritor e jornalista Márwio Câmara definiu sua literatura como “performática” — e ela concorda, com um sorriso entre a ironia e o afeto.


Dor, ritmo e entrega

Escrever, para Camila, é um processo doloroso e intenso. Ela se permite viver, experimentar e revisitar monstros em nome de um objetivo poético. Nequice nasceu dessa entrega total — uma experiência solitária, inquieta e corporal.

Entre pesquisas, ritmos e escapes, ela chegou a duvidar da própria obra, justamente por estar imersa demais em seu universo de torpor. “Tenho a impressão de que curti demais escrever Nequice”, confessa, com um riso que carrega tanto leveza quanto exaustão.


Literatura como ferida e sentido

Se há algo que define a escrita de Camila Passatuto, é o incômodo. Sua literatura não quer ser apenas lida — quer ser sentida na carne. Uma leitora certa vez lhe disse: “Não sei se entendi de fato o que você quis dizer, mas senti na pele o que disse.” Para a autora, essa é a reação ideal: que o leitor sinta o texto antes de traduzi-lo.

“É isso o que busco”, afirma. “Que a literatura seja sentida. Que atravesse.”


Um convite à leitura visceral

Nequice é um livro que desafia o leitor a experimentar a palavra de modo mais carnal, sensorial e violento. É uma travessia que exige corpo e entrega — como se a linguagem torcesse o leitor de dentro para fora.

A autora descreve a leitura como um embate necessário: “A leitura pode te desafiar, e isso é bom. Vá, lute e vença.”


Onde encontrar o livro

O livro Nequice: Lapso na Função Supressora está disponível no catálogo da Editora Litteralux.

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