
A FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) é apontada como a maior feira literária do mundo. Em suas edições, promove mesas temáticas com escritores nacionais e estrangeiros e conta com patrocínios de grandes corporações (p. ex. Nubank, Vale, Itaú) via leis de incentivo cultural. Esse modelo híbrido – entre evento cultural e máquina de marketing editorial – gera críticas de que a Flip age mais como indústria cultural do que como espaço democrático de debate. Por um lado, a organização costuma enfatizar um discurso de pluralidade de visões e sensibilidades; por outro, muitos observadores apontam que o evento privilegia os interesses de editores e patrocinadores, tornando a literatura uma mercadoria. De fato, o programa oficial de 2025 descreve como “casas de editoras” onde quase todas as grandes editoras nacionais montam sua própria programação – um exemplo claro de como a feira funciona também como vitrine comercial, alinhada à “cultura do mercado”. Esses aspectos mercadológicos da Flip tensionam o debate sobre inclusão e representação: quem tem voz no evento, e quem fica de fora?
A programação da Flip costuma refletir as condições de capital cultural de autores já consagrados. Como nota o crítico literário Lucas Grosso em entrevista a Joselia Aguiar (curadora da Flip), durante muitos anos a festa convidou sobretudo escritores brancos e vinculados às grandes editoras, gerando a crítica de elitismo. Em resposta a cobranças por maior diversidade, a Flip passou a homenagear autores negros e indígenas (por exemplo, Lima Barreto em 2017) e chegou a escalar 30% de autores negros naquela edição. Ainda assim, no ano seguinte o percentual foi reduzido, e relatos da imprensa mostram que a participação de escritores de periferias, de slams de poesia ou de editoras pequenas continua mínima. Em resumo, têm voz na Flip os autores que já possuem lugar no “circuito literário” – geralmente aqueles com respaldo institucional, escolaridade universitária e capital cultural elitizado. Já ficam à margem escritores de favelas, quilombos, pequenos grupos editoriais e mídias alternativas, cujas obras não recebem a chancela do mercado mainstream.
Esse cenário pode ser interpretado à luz da teoria crítica da cultura. Theodor Adorno e Max Horkheimer alertaram que a indústria cultural padroniza a arte para o consumo, transformando-a em produto de massa voltado ao prazer estereotipado. Segundo eles, uma “indústria cultural” submete o público a uma estética homogênea e ao consumismo, impedindo a formação de juízo crítico. No caso da Flip, percebe-se um padrão: mesas e debates que repetem fórmulas (autores consagrados, temas de engajamento leve) e raramente “desconfortam” o público acostumado à mesma cultura legitimada pelo mercado. Pierre Bourdieu também é instrutivo aqui: ele definiu capital cultural como o conjunto de saberes e gostos que reproduzem vantagens de classe. Em “Distinção”, Bourdieu argumentaria que eventos culturais oficiais (como uma grande festa literária) tendem a premiar os gostos do habitus dominante, reforçando o distanciamento social. Aplicando isso à Flip, nota-se que a curadoria e o público – embora promova diversidade simbólica – ainda espelham desníveis educacionais e econômicos.
Guy Debord, por sua vez, mostrou como na sociedade moderna “tudo é espetáculo”, ou seja, a cultura torna-se mercadoria-símbolo na ordem capitalista. Debord escreveu que “todos os produtos – explicitamente culturais ou não – podem ser descritos como ‘mercadorias-do-espetáculo’” e que para isso “toda a cultura deve primeiro ser estabilizada, homogeneizada e integrada no que se chama ‘entretenimento’”. Na Flip, essa integração é visível: literatura, artes plásticas, música e até turismo se misturam a interesses corporativos. Por exemplo, a questão racial ou ambiental é tratada em painéis com autores negros e indígenas convidados, mas sempre em sessões mediadas pela mídia e vinculadas a patrocinadores. Assim, mesmo temas sociais urgentes acabam virando produto cultural organizado pela estrutura do evento.
Gayatri Spivak, filósofa pós-colonial, cunhou a frase “o subalterno não pode falar” para mostrar que pessoas marginalizadas muitas vezes não têm voz no discurso dominante. Essa ideia ajuda a pensar o que significa “quem ainda não tem voz” na Flip: escritores de periferia, autores LGBTQ+, indígenas, das favelas ou africanos-afro-brasileiros de comunidades remotas podem até comparecer, mas seus olhares são filtrados e dirigidos pelo aparato da festa. Como observado na crítica jornalística, grupos historicamente excluídos às vezes precisam criar seus próprios espaços – seja por meio de coletivos independentes ou de eventos paralelos – para serem escutados. Estas iniciativas comprovaram a insatisfação de parte do público: como disse um leitor, certa vez, “até a galera da minha quebrada veio”.
Em suma, embora a FLIP se apresente como festa pluralista, o seu fator mercadológico é intenso: patrocínios bilionários, venda de ingressos e palcos dedicados a editoras gigantes promovem uma lógica de mercado. Isso não é necessariamente incompatível com qualidade literária, mas, na visão de críticos modernos, desvia a atenção das motivações sociais profundas. Como nota Joselia Aguiar (curadora da Flip) num contraponto: a festa deveria discutir literatura e cultura, não apenas vender livros. No entanto, observa-se que muitos debates são patrocinados por editoras que lançam best-sellers, reforçando o status quo cultural. A corrente principal de pensamento crítico – de Adorno a Bourdieu, passando por Debord e Spivak – sugere que, nesses eventos, os valores do capital tendem a sobrepor-se à diversidade real, confinando alguns sujeitos à condição de “marginais do discurso”.
Em conclusão, a pergunta “quem tem voz, quem não tem?” revela os contornos de poder na Flip. Os que têm voz são, em geral, autores institucionalizados e respaldados pelo mercado; enquanto muitos outros – dos jovens poetas da periferia aos acadêmicos dissidentes – ficam à margem. A literarização da feira serve tanto a objetivos culturais como mercadológicos, e somente a reflexão crítica (como a de pesquisadores e pensadores contemporâneos) pode apontar caminhos para incluir de fato todas as vozes. Afinal, como sugeriram Antonio Candido e outros intelectuais brasileiros, a literatura deve ser vista não como luxo, mas como direito de todos – um ideal que ainda demanda luta dentro e fora das “bancas de exposição” da Flip.
Referências: Obras clássicas sobre indústria cultural e capital simbólico, bem como análises contemporâneas dos debates na FLIP, fundamentam esta discussão. Você também pode consultar diretamente os debates da Flip (entrevistas, imprensa especializada, casas de cultura locais) para mais contexto.