É estranho — e, ao mesmo tempo, revelador — perceber que o número de leitores no Brasil diminui a cada ano, mas as grandes premiações literárias seguem funcionando como se nada estivesse acontecendo. Como se a crise de leitura, de acesso e de interesse fosse apenas uma paisagem irrelevante diante dos holofotes que se acendem para a festa de gala.
O que deveria ser uma celebração do livro como bem cultural e coletivo, muitas vezes se transforma numa grande vitrine publicitária, pensada para alavancar vendas dos catálogos das grandes editoras. Prêmios que, em tese, deveriam impulsionar a bibliodiversidade, revelar novas vozes e reconhecer riscos estéticos, acabam funcionando como mais uma engrenagem de uma lógica de mercado centrada em poucos nomes — os de sempre.

📉 Menos leitores, mais estratégias de prestígio
Os dados são preocupantes. O Brasil perdeu milhões de leitores na última década. Bibliotecas públicas estão sucateadas. Livros didáticos viraram alvos políticos. O preço do livro sobe, o acesso à leitura diminui, e ainda assim — os prêmios continuam girando no mesmo eixo de sempre.
O que se vê, com frequência, é a repetição de autores que já têm visibilidade, estrutura, distribuição nacional e inserção midiática, disputando (e vencendo) as maiores premiações do país. Mesmo quando a categoria é “estreante”, é comum que o autor já tenha publicado de forma independente, participado de coletâneas ou tenha vínculos acadêmicos que facilitam seu acesso a esses espaços.
Enquanto isso, milhares de autoras e autores brasileiros escrevem da margem — geográfica, econômica e simbólica — sem nunca serem sequer considerados por essas comissões.
💰 O selo da estante: prestígio convertido em lucro
Não é preciso muito esforço para perceber o mecanismo. Um livro lançado por uma grande editora, finalista ou vencedor de um prêmio literário, recebe automaticamente uma nova campanha de divulgação, ganha nova tiragem, novos espaços nas livrarias físicas e digitais, e é relançado com o selo da premiação na capa.
O prêmio, que deveria ser símbolo de reconhecimento crítico e cultural, vira ferramenta de marketing. E isso, por si só, não é exatamente o problema. O problema é quando essa lógica deixa de reconhecer o valor literário e passa a refletir exclusivamente o valor de mercado.
Se todos os premiados vêm das mesmas casas editoriais, dos mesmos círculos de influência e dos mesmos grupos de curadores, qual é a função pública desse prêmio? A quem ele serve? E o que ele está dizendo — ou deixando de dizer — sobre o que é literatura no Brasil?
📚 A função social que os prêmios esqueceram
Em um país tão desigual quanto o Brasil, premiações literárias não podem ser apenas celebrações para quem já venceu. Elas precisam ser ferramentas de reparação, de visibilidade e de incentivo à leitura. Precisam enxergar a periferia editorial — que não é menor, é apenas silenciada.
Enquanto uma editora independente luta para financiar uma tiragem de 300 exemplares por crowdfunding, outra imprime 10 mil cópias com antecipação de vendas, orçamento de marketing e acesso direto às comissões. Não se trata de qualidade — trata-se de estrutura. E ignorar isso é fingir que a competição é justa.
E não é.
✊ Conclusão: a literatura não pode ser só vitrine de vitrine
Se os prêmios literários quiserem continuar relevantes, precisam urgentemente repensar sua função. Precisam se comprometer com a bibliodiversidade, com a descoberta de vozes novas, com a descentralização dos centros de poder editorial. Precisam se perguntar: para quem estamos dando palco? Quem estamos deixando de fora?
Em um país que lê pouco, o prêmio literário não pode ser apenas mais um carimbo de prestígio para os mesmos nomes. Precisa ser trampolim, farol, aposta — e não só aposta de marketing.
Se virar só vitrine, perderá seu valor cultural. E, pior: será cúmplice da estagnação de um mercado que já exclui demais.
A boa literatura não precisa de troféus para existir.
Mas talvez os troféus precisem de mais coragem para continuar existindo com relevância.
Jéssica Iancoski
Jéssica Iancoski (1996) é editora, poeta e articuladora cultural. Presidente da Associação Privada Sem Fins Lucrativos Toma Aí Um Poema, a primeira editora no modelo ONG do Brasil, já faturou mais de R$ 1 milhão no mercado editorial, consolidando-se como referência em inovação e impacto social. Graduada em Letras (UFPR) e Psicologia (PUCPR), com especializações em Gestão de Projetos e Negócios, é autora de mais de 10 livros, incluindo A pele da pitanga (finalista do Prêmio Jabuti). Reconhecida por sua atuação inclusiva, publicou mais de 2 mil autores e produziu mais de 1.500 poemas audiovisuais, alcançando 1 milhão de acessos. Jéssica também recebeu prêmios como o Candango de Literatura (GDF) e Sérgio Mamberti (MinC) e, atualmente, é curadora do Prêmio Literário da Cidade de Curitiba.