Literatura Marginalizada vs. Literatura Tradicional: Quem Ainda Decide o que É “Literatura Brasileira”?

Durante muito tempo — e ainda hoje — a ideia de “literatura brasileira” foi construída a partir de um espaço muito específico: o eixo Rio-São Paulo, branco, urbano, universitário, de classe média ou alta. Um espaço que, com raras exceções, marginalizou outras vozes, outros corpos, outros modos de escrever e de existir.

Enquanto isso, nas periferias, nas favelas, nos interiores, nas aldeias e nas quebradas, milhares de autoras e autores escrevem todos os dias — e escrevem bem. Mas escrever não é suficiente. É preciso ser publicado, ser lido, ser legitimado. E aí, o abismo se forma.

Porque o Brasil escreve de muitos lugares, mas o mercado literário ainda publica de poucos.

Foto de Mahrael Boutros: https://www.pexels.com/pt-br/foto/dois-livros-sobre-a-cabeca-da-mulher-1215714/

🧱 O muro invisível dos “clubinhos literários”

É comum ouvirmos, entre escritores independentes ou estreantes, uma queixa recorrente: o meio literário é fechado, elitista, difícil de acessar. E não é impressão — é estrutura. O caminho até o reconhecimento costuma passar por filtros muito específicos: cursos caros, editoras grandes, contatos nas redações, eventos de prestígio, capital simbólico acumulado em universidades e redes sociais brancas e bem posicionadas.

Se você não faz parte desse circuito, tudo se torna mais difícil: o acesso à publicação, às críticas positivas, aos prêmios, à visibilidade. E, claro, à chancela de que “você é literatura de verdade.”

Autores negros e periféricos, por exemplo, relatam frequentemente o sentimento de não pertencimento nos espaços “oficiais” da literatura — eventos onde se sentem observados, lidos com desconfiança ou ignorados por quem ainda enxerga o “centro literário” como um clube para poucos. Isso leva muitos desses escritores à autopublicação, à criação de seus próprios selos, ao trabalho colaborativo com outras editoras independentes — não por escolha, mas por necessidade.


✊ A potência marginal que o mercado ainda resiste a reconhecer

Mas é fora desse centro que a literatura brasileira mais pulsa hoje.

Movimentos como o da Literatura Marginal, encabeçado por autores como Ferréz e Sérgio Vaz, escancararam as vivências da favela, da pobreza, da violência policial, da fome, da infância negra — não com exotismo, mas com verdade, denúncia e poesia. Esses autores não pediram licença para entrar: ocuparam as prateleiras da vida real.

E mesmo com o impacto que causaram (e ainda causam), a resistência institucional permanece. As grandes premiações ainda premiam os mesmos nomes. O cânone segue masculino, branco, eurocêntrico. A crítica ainda hesita diante da oralidade, da linguagem popular, do regionalismo, do corpo que escreve de outro lugar.

Mas o que seria da literatura brasileira se não fossem essas vozes?
O que seria da nossa memória escrita se não tivéssemos quem narrasse o país que não aparece no editorial do domingo?


📌 Centro e periferia: categorias que precisam ser revistas

Falar de literatura marginalizada não é reforçar o gueto — é denunciar que o centro se construiu excluindo tudo o que não era espelho. E essa exclusão não é neutra: ela é racial, econômica, territorial, estética e simbólica.

O centro literário não é apenas geográfico. É político.
E quem está fora dele não é “menor” — é silenciado.
Mas o que os autores da margem vêm fazendo é, justamente, rasgar esse silêncio.

E não são poucos: Bruna Mitrano, Geovani Martins, Eliane Potiguara, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Márcia Kambeba, Amara Moira, Allan da Rosa, Mel Duarte, Jéssica Iancoski, entre tantos outros. São escritores que criaram outros centros, outras formas de circulação, outras estéticas e outras potências.

Eles não esperaram ser convidados.
Eles escreveram — e seguem escrevendo.
Porque quem escreve a partir da margem sabe que a literatura também é sobrevivência.


🖋️ Conclusão: o Brasil real escreve, mesmo que o mercado finja que não vê

A pergunta que fica não é se há boa literatura na periferia. Isso já está claro.
A pergunta é: até quando o mercado editorial vai seguir fingindo que ela não existe?

O conflito entre literatura marginal e tradicional não é apenas estético — é uma disputa de narrativa, de memória e de lugar.
E se a literatura brasileira quiser continuar viva, precisa sair da sua bolha e aprender a escutar — não para dar espaço, mas para reconhecer que o espaço já está ocupado.

Porque o centro da literatura brasileira já se descentralizou.
O que falta é o mercado perceber.

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *