
Chamar uma literatura de “marginal” sempre me inquietou. Porque essa palavra — margem — carrega, desde sempre, a ideia de fora. Fora do cânone. Fora da crítica. Fora da livraria chique. Fora da mesa de decisão. Fora da lista dos prêmios. Mas eu pergunto: fora de onde, exatamente?
Para muita gente, o que o mercado chama de margem é o único centro possível.
A literatura que nasce nas periferias, nas aldeias, nos presídios, nos trens, nos banquinhos de feira, nos blocos de notas, nas calçadas, nas varandas, nos bastidores da vida — essa literatura é central. Ela não é “alternativa”. Ela é urgente, real, vital. É a que se escreve com o corpo, com o corre, com a dor e com a vontade de não desaparecer.
A elite pode não ler. A crítica pode não resenhar. As grandes editoras podem não publicar.
Mas essa literatura está aí, pulsando, formando leitores, produzindo sentido, salvando vidas.
Enquanto alguns tentam defender a “alta literatura”, outros estão escrevendo para sobreviver.
E esse tipo de escrita, que nasce da necessidade, é também um tipo de verdade.
A gente precisa reconfigurar os espaços de fala e escuta no campo literário.
Não dá mais para achar que o centro é quem tem capital, diploma e networking.
O centro, para muitos de nós, é onde conseguimos existir.
E isso significa criar nossas próprias editoras, nossos próprios circuitos, nossos próprios clubes de leitura, nossos próprios palcos, redes, rodas, prêmios, rankings.
Significa dizer: se o centro não nos quer, fundamos outro.
Na Toma Aí Um Poema, tenho visto isso acontecer.
Poetas que escreveram escondido a vida inteira. Travestis que nunca se imaginaram publicadas. Senhoras que achavam que escrever não era “coisa pra elas”. Crianças que se reconheceram escritoras antes de se reconhecerem como gente no mundo.
Essas pessoas não estão nas margens. Elas são o centro de sua própria história.
E talvez o que esteja errado seja o mapa.
Porque quem diz onde está o centro, também diz quem merece atenção. Quem merece aplauso. Quem merece contrato. Quem merece silêncio. E quem, na prática, é descartável.
Mas a boa notícia é que o mapa está rasgando.
E da dobra do papel amassado, brota um novo território.
Feito de outras palavras.
Outras vozes.
Outras lógicas.
Outros mundos possíveis.
E essa literatura — de margem, de centro, de atravessamento — é o que realmente nos interessa.
Jéssica Iancoski
Jéssica Iancoski (1996) é editora, poeta e articuladora cultural. Presidente da Associação Privada Sem Fins Lucrativos Toma Aí Um Poema, a primeira editora no modelo ONG do Brasil, já faturou mais de R$ 1 milhão no mercado editorial, consolidando-se como referência em inovação e impacto social. Graduada em Letras (UFPR) e Psicologia (PUCPR), com especializações em Gestão de Projetos e Negócios, é autora de mais de 10 livros, incluindo A pele da pitanga (finalista do Prêmio Jabuti). Reconhecida por sua atuação inclusiva, publicou mais de 2 mil autores e produziu mais de 1.500 poemas audiovisuais, alcançando 1 milhão de acessos. Jéssica também recebeu prêmios como o Candango de Literatura (GDF) e Sérgio Mamberti (MinC) e, atualmente, é curadora do Prêmio Literário da Cidade de Curitiba.