“me sinto filha do sol vitória-régia samambaias e da mamãe-da-água” (p. 33)
Igapó: Poemas da Amazônia, de Sandrinha Barbosa
🌱 Um canto do fundo da floresta
Igapó é uma travessia poética que mistura memória, espiritualidade, denúncia e encantamento. Sandrinha Barbosa escreve com os pés descalços na lama fértil da ancestralidade e com os olhos voltados para o céu das estrelas antigas. Os poemas carregam o peso do tempo e a leveza das águas amazônicas, costurando lenda, dor, reza e resistência.
Não há uma estrutura rígida. Os textos fluem como rios — ora doces, ora turbulentos, ora sagrados, sempre vivos.
🌍 Voz de mulher amazônida, indígena e universal
Descendente do povo Xokó (Sergipe), Sandrinha nasceu na Amazônia brasileira e foi iniciada na pajelança aos quatro anos. Sua escrita é atravessada por essa vivência entre o saber indígena, a medicina tradicional e a arte.
“me sinto floresta densa serra e savana […] filha do amazonas madeira negro purus” (Poema “Sentimentos”, p. 32–33)
A poeta não apenas fala sobre a floresta: ela escreve como se a floresta falasse através dela. Seus versos são habitados por cobras grandes, mamãe-da-água, boto-cor-de-rosa, árvores milenares, pajés e constelações.
🗣️ Oralidade, memória e resistência
A linguagem poética do livro preserva o sabor da oralidade. Os poemas evocam vozes de ancestrais — como em Paaba, Ernesto (p. 16), um tributo lírico a seu pai Makuxi:
“em suas mãos (esgarçadas) toda uma saga valente difícil, inclemente” (p. 17)
Também está presente o trauma coletivo, como em Réquiem (p. 30), dedicado ao massacre do Paralelo 11:
“às centenas de mortos cuja alegria tombou ferida na terra encharcada de sangue” (p. 30–31)
A autora denuncia, mas sem perder o lirismo. Sua poesia é denúncia que reza, canto que chora e palavra que cura.
🌊 O igapó como território simbólico
O termo “igapó” — áreas amazônicas alagadas periodicamente — é metáfora central do livro. Os poemas emergem e submergem como as águas, revelando e ocultando dores e segredos. A poeta escreve da margem, do submerso, daquilo que escapa à linguagem civilizada:
“vi meu espírito no olhar assustado do caititu no leite branco da seringueira […] no canto suave e mágico do uirapuru” (Poema “Transe”, p. 34)
Essa poética do transe e da fusão com o ambiente natural configura uma forma de resistência ontológica — ser floresta é resistir.
🧶 Entre os fios da memória e da utopia
Como indica o título, o livro é tecido com os “fios da memória”. Mas não apenas como saudade: trata-se de memória como semente de futuro. Poemas como Ave, Solimões e Salto falam de espiritualidade, da conexão com os rios e de mitologias originárias que seguem vivas — como as sete mulheres Paresi levadas pelo espírito do rio Sacre.
“pedaço de madrugada céu límpido e morada de estrelas” (p. 21)
✅ Conclusão
Igapó é um livro essencial para quem deseja escutar as vozes da Amazônia com atenção, respeito e poesia. Sandrinha Barbosa oferece uma obra intensa e necessária, que transborda verdade, beleza e dor com a sabedoria de quem carrega o saber indígena no sangue e na palavra.
É um livro que não se lê apenas com os olhos, mas com o corpo inteiro. Um cântico de resistência, uma oferenda à terra e às águas.