“A guerra do arco e flecha é passado. Hoje somos os guerreiros da pena.”
(p. 9)

🌿 Palavra como semente ancestral
Fios da Memória é um livro que nasce do corpo, da terra e do tempo. Em tom de ensaio autobiográfico poético, Zélia Puri narra o processo de redescoberta de sua identidade indígena como mulher Puri, antes apagada pelo silêncio, pelo medo e pelo apagamento sistemático dos povos originários do Brasil.
A autora revela, em uma escrita que alterna confissão, análise e poesia, como o “não-pertencimento” corroeu sua juventude até que, ao nomear o vazio, ela pôde finalmente traçar o caminho de volta. Não se trata de resgatar o passado como mito imobilizado, mas de reacender a memória como raiz viva, capaz de sustentar a existência no presente.
🧬 Pertencimento como pulsação
Um dos conceitos centrais da obra é o pertencimento — ou melhor, a ausência dele como ferida histórica. O que Zélia revela com lucidez e sensibilidade é o trauma intergeracional vivido por pessoas indígenas invisibilizadas, que foram ensinadas a negar suas origens para sobreviver:
“Para viver precisávamos não ser índios.” (p. 10)
“O silêncio em torno deste assunto, sistematicamente mantido pela minha mãe, perdurou até o início da minha fase adulta.” (p. 11)
É nesse espaço de silêncio que a autora semeia a palavra. Cada verso, cada parágrafo é um fio que conecta passado, presente e futuro — reivindicando o direito de ser, saber e florescer como indígena.
📖 Híbrido entre ensaio, memória e poesia
A estrutura do livro é fluida e orgânica. O texto não obedece a uma linearidade tradicional — é antes uma colcha de retalhos feita de lembranças, canções, poemas, relatos familiares, reflexões acadêmicas e registros culturais. Há citações de Eduardo Galeano, Mia Couto e Vanessa Rodrigues de Araújo, que se entrelaçam com composições como Canto da Raça, Petara e Ressurgir, escritas por Zélia ao longo de décadas.
A multiplicidade de gêneros é proposital: assim como a identidade indígena contemporânea, o livro recusa uma forma única de existir. Ele vibra entre o íntimo e o coletivo, entre o grito e a canção.
✊🏾 Escrita como estratégia de sobrevivência
Zélia Puri aponta a escrita como um novo instrumento de resistência — “a pena substituindo o arco e flecha” — e se posiciona como parte do movimento de ressurgência do povo Puri. O livro denuncia com firmeza o racismo estrutural, os estigmas impostos ao indígena urbano e os estereótipos que ainda limitam o reconhecimento pleno de sua existência:
“Não necessito me ‘vestir de índio’ porque EU NASCI INDÍGENA, e sei quem sou.” (p. 30)
“Somos aqueles que protegiam as matas mesmo antes de ela ser chamada de ‘pulmão do mundo’.” (p. 27)
Esse enfrentamento é feito com ternura, sim, mas também com vigor. A autora reivindica o direito à memória viva, à cultura, à fala, ao espaço, ao afeto e à dignidade — em nome próprio e de seus ancestrais.
🌱 Um livro que floresce
As imagens botânicas percorrem o texto todo: sementes, raízes, galhos, folhas, árvores. São metáforas vivas do que o livro representa — um replantio de si mesma, da cultura, da história silenciada.
“Tentaram nos enterrar vivos, mas não sabiam que somos sementes, que o tempo acabou por germinar.” (p. 36)
Ao final da leitura, o que fica é o sentimento de ter escutado uma voz que vem de muito longe — mas que ecoa com absoluta atualidade. Fios da Memória não é um livro apenas para indígenas: é um livro urgente para qualquer pessoa que precise aprender a escutar.
📘 Ficha técnica
- Título: Fios da Memória
- Autora: Zélia Balbina Puri
- Editora: Toma Aí Um Poema — Coleção Borduna Bordô
- Ano: 2024
- Páginas: 42
- ISBN: 978-65-983274-6-0
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski