“tem hora que o coração / parece que não está batendo / só apanhando.” (p. 7)

💥 Uma poética suja, viva e feroz
Verminal é um livro que não se ajoelha. A começar pela epígrafe do poeta Ricardo Lacava: “poesia afiada como machado, tiro à queima-roupa, poesia suicida como de Torquato Neto”. Gianetti, morador em situação de acolhimento institucional, constrói seus versos como quem levanta um altar no meio do entulho: versos que nascem da lama urbana, mas irradiam verdade poética como poucos.
Trata-se de uma obra profundamente marcada pela condição da rua, da velhice, da exclusão e do álcool — e ainda assim, capaz de extrair beleza crua do cotidiano de uma cidade cruel. Os poemas não têm título, nem enfeite. Apenas corpo e soco.
🌆 A cidade como cárcere e inspiração
A cidade de São Paulo aparece com frequência como cenário distópico e personagem central, seja na Avenida São João, no Viaduto do Chá, nas calçadas onde o poeta dorme sobre papelões. Gianetti não idealiza a cidade — ele a enfrenta, como em:
“afinal de contas / aqui em Sambaville / onde a luz de nossa estrela / seca cagalhões e vômitos nas calçadas.” (p. 40)
Essa São Paulo que o autor nos apresenta é feita de muquiranas, ratazanas, campanários, urina, cães, urubus e tatus-bola — mas também de resiliência, ironia e lirismo. A cidade aparece não como um espaço de redenção, mas como um teatro do absurdo realista.
🧠 Lirismo abismal e humor corrosivo
Gianetti mistura alta cultura com palavrões, música com silêncio, citações cultas com gírias de rua. Não há medo do grotesco, nem pudor com a tristeza. Em vez disso, há uma lírica carregada de humor ácido, autorreferência e tragédia escancarada:
“eu só presto pra três coisas: escrever, beber e ler. / não, só para beber e escrever. / não, só para beber. / quer saber? não presto pra nada.” (p. 12)
Há poemas em que dialoga com Leminski, Bandeira, Poe, Bukowski, Monet, Jim Hendrix e até mesmo Scania. O uso da língua é espontâneo, mas deliberadamente trabalhado. Os ritmos se alternam entre a velocidade do pensamento e a lentidão da ressaca, compondo uma partitura existencial brutalista e bela.
⚰️ Envelhecer nas bordas: a poesia como último abrigo
A idade é outro tema recorrente — e dilacerante. Em sua velhice, o poeta narra o corpo que se desmancha, os ossos que estalam, os lapsos de memória. Mas não se vitimiza. Gianetti transforma a decadência em epifania lírica, como na imagem de um idoso varrendo as cinzas do pai com um vaso velho de barro (p. 20).
“quando começa o dia / estou ausente de mim / quando acaba o dia / estou farto de mim.” (p. 23)
Esse tipo de verso, direto e devastador, condensa a sinceridade desconcertante que perpassa toda a obra. Há ali um coração em ruína que continua pulsando — ou apanhando, como ele mesmo diz.
🚬 Formato e estilo: poema como trapo de sobrevivência
Os poemas não seguem uma forma fixa. São escritos como fragmentos de delírio lúcido, misturando memória, sonho, denúncia e filosofia de botequim. Gianetti escreve como quem rabisca num caderno sujo às 3h da manhã, sob uma marquise, com um copo ao lado e a cidade sangrando em volta.
As imagens são ricas e estranhas: “feromônio de louva-deus”, “cocô de robô”, “marquise do outro lado da rua com sombras gélidas”, “caramujo velho que carrega a casa nas costas”. É um surrealismo visceral e decadente — uma literatura do desbunde existencial.
✅ Conclusão
Verminal é uma pedrada poética. Um livro para ser lido sem filtro, sem medo, sem romantismo. Eugênio Ramos Gianetti entrega uma obra que assombra e emociona, que incomoda e encanta, que nos confronta com a beleza do indesejável, do marginal, do imprestável.
O livro é, por si só, um ato de resistência — não apenas literária, mas humana. Um manifesto do que ainda pulsa, mesmo entre entulhos.
📘 Ficha técnica
- Título: Verminal: Poemas & Anomalias
- Autor: Eugênio Ramos Gianetti
- Editora: Toma Aí Um Poema – Selo Eu-i
- Ano: 2024
- Páginas: 58
- ISBN: 978-65-6064-073-3
- Projeto gráfico e capa: Jéssica Iancoski
- Revisão: Eugênio Ramos Gianetti
- Publicação: Junho de 2024