“Os textos deste volume foram forjados como uma forma de resistência e tomada de consciência”
— Marcos Roberto Pereira (prefácio, p. 11)

🌒 Uma poética do entretempo: memória, identidade e tensão
Quando Era é um livro atravessado pelo tempo. Mas não se trata de uma nostalgia simples: é uma escavação do tempo interior, da memória coletiva e do corpo negro como arquivo. O que Carlos Roque propõe nesta obra não é apenas uma reunião de poemas: é um conjunto de relâmpagos líricos que iluminam o presente com a luz bruta do passado — e com as sombras daquilo que ainda persiste.
Escrito majoritariamente no final dos anos 1990, como revela o autor na apresentação, o livro ressurge agora como um gesto de retomada e resistência, propondo uma leitura política do afeto e do cotidiano, marcada por lirismo, angústia e lucidez.
🖤 Corpo negro, cidade e cicatriz
O corpo negro aparece como território simbólico e literal ao longo da obra. Em poemas como Retaliação (p. 24) e Para que não haja enganos (p. 51), Roque fala da carne racializada, da violência histórica, da resistência silenciosa e cotidiana:
“somente queremos saber / da riqueza e do ouro / que se escondem / lavras / por séculos seguidos / de veias abertas / e fluem / como sangue ressequido / por debaixo da tua pele branca” (p. 24)
É uma poesia de confronto e de desvio. Ao mesmo tempo em que homenageia suas origens e os seus, o autor lança mão de uma ironia feroz e elegante para denunciar o racismo estrutural, a desigualdade e os apagamentos impostos à população negra e periférica.
🌊 Afeto, desejo e o masculino em ruína
Carlos Roque também escreve o amor — mas não o amor romântico idealizado. Seus poemas de afeto e erotismo são atravessados por ambiguidades, pelo cansaço de quem já amou demais ou foi amado de menos. Em Afrodite (p. 41) e Mesa de Mar (p. 29), há uma sensibilidade rara:
“E me aproximei / deixei meus ouvidos abertos / perto dos corações e das pérolas / apenas para ouvir / o curvo eco dos caracóis” (p. 29)
São versos que falam da escuta, do cuidado, da aproximação — um masculino vulnerável, ferido, que busca se reconstruir em meio ao colapso. Mesmo quando aborda o desejo (como em Arcadas ou Relento), a linguagem do autor escapa da idealização e da dominação para tocar o sagrado e o frágil do encontro entre corpos.
🏚️ A cidade como palco e cicatriz
O espaço urbano aparece como extensão do corpo e da memória. Poemas como Anchieta (p. 30), Guarujá (p. 47) e Cenas para outra sessão (p. 20) misturam geografias reais com paisagens emocionais, revelando uma poética profundamente enraizada nas ruas, nas praias, nos becos, nos morros.
“atrás do sol / casas construídas no assoalho instável / dos morros mais altos […] / que precisa / urgentemente / erguer barreiras / ao sul / para se defender de nós” (p. 21)
A cidade é presença constante — às vezes ruína, às vezes promessa. O olhar do poeta é simultaneamente íntimo e sociológico.
💥 Estilo: entre a crueza e a elegância
A poesia de Carlos Roque oscila entre o corte seco e o enlevo sutil. A sintaxe é muitas vezes entrecortada, minimalista, mas sempre carregada de imagens vívidas, elipses sonoras e jogos de ritmo. A estrutura livre dos versos contribui para o efeito de movimento, de pensamento em fluxo.
Além disso, a escolha por uma linguagem híbrida — ora barroca, ora urbana, ora quase bíblica — cria um estilo singular, onde o sagrado e o profano se encontram em campo de batalha. O poema Proclamação (p. 15) é um exemplo disso: um manifesto lírico-político que mistura espiritualidade, sexo, solidão e subversão:
“quero um antro de silêncio e paz / profanado apenas pelos meus tormentos / quero um grito desalinhado / quero ventre / ver-me / verme / livres de mim.” (p. 15)
✅ Conclusão
Quando Era é um livro que não pede licença: entra pela porta da frente, senta no sofá e exige que o leitor se levante. É um convite ao desconforto necessário, à escuta atenta e ao reencontro com a poesia como ferramenta de verdade e beleza.
Carlos Roque entrega uma obra urgente, intensa, e absolutamente generosa, onde o lirismo é também política, onde o cotidiano é também rito. Um livro que honra sua linhagem e inscreve sua marca na poesia brasileira contemporânea.
📘 Ficha técnica
- Título: Quando Era
- Autor: Carlos Roque
- Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP) – Coleção Machado Preto
- Ano: 2024
- Páginas: 52
- ISBN: 978-65-982649-8-7
- Projeto gráfico: Jéssica Iancoski
- Revisão: Carlos Roque