Anna Davison estreia na literatura com uma obra de notável delicadeza, inteligência sensível e força existencial. Escrever de boca aberta é um livro que atravessa a pele — e, ao mesmo tempo, escava para dentro, sondando os silêncios que sustentam as palavras e os ruídos que habitam o corpo. A autora escreve com os sentidos aguçados, como quem tateia o mundo com as pálpebras abertas e os pés descalços.
A linguagem é econômica, mas não minimalista: é uma escrita densa de percepção, que reverbera como um sussurro capaz de abalar o chão. Há uma investigação constante do cotidiano, do corpo, da memória familiar, dos afetos e da escrita em si — temas abordados por meio de uma tessitura poética refinada, sem excessos, sem ornamentos desnecessários, mas com potência imagética e sonora.

🌬️ Uma poética sensorial e sinestésica
A voz poética que atravessa os poemas assume a forma de um corpo exposto: “meu sangue / quase sem querer adivinho seu sabor a ferro” (p. 32). Em diversos momentos, o corpo é o ponto de partida da experiência estética. Não apenas um corpo feminino, mas um corpo marcado pela memória, pela fome, pela secura, pela digestão dos dias.
Anna é uma poeta que ouve com os olhos, vê com as mãos, cheira com os ouvidos. Essa sinestesia aparece não como recurso estético forçado, mas como condição de sobrevivência num mundo que exige que a escrita aconteça “com a boca aberta” — ou seja, sem censura, sem máscara, sem medo.
🪞 Escrever, lembrar, desaparecer
A escrita, aqui, é uma forma de manter-se viva, mas também uma forma de se dissolver: “me torno mais estranha […] desapareço” (p. 21). Anna parece escrever para impedir o próprio apagamento, mas também para aceitar o desaparecimento como parte do processo. A memória familiar é um fio condutor recorrente — especialmente nos poemas “menino” e “dióspiro” — onde pais, avós e gestos herdados ganham uma nova moldura sensível.
A repetição de gestos banais, como tomar café, andar pelas ruas, cozinhar ou observar a luz, aparece como um ritual de presença no mundo — mas também como uma forma de lidar com a impossibilidade da permanência. O tempo da escrita é o tempo do corpo: falho, finito, urgente.
🧠 Fragmento e fluxo de pensamento
Em termos formais, Escrever de boca aberta se vale de um ritmo próximo ao fluxo de consciência. Há poemas que operam como anotações íntimas, diários da percepção, contemplações viscerais, como em “ficção”, “quase basta” ou “hospital Sarah Kubitschek” — textos que flertam com o ensaio poético e a prosa lírica.
A poeta costura o concreto e o simbólico de forma sutil: os nomes, os cheiros, as calçadas, as frutas, os tufos de poeira, os barulhos do vento, tudo é matéria literária. Essa relação com o detalhe do mundo material evoca, por vezes, Marília Garcia, Ana Martins Marques e Wislawa Szymborska, com quem partilha o olhar micro e a linguagem de precisão flutuante.
🎧 A estética do som: ruído, silêncio e ritmo
O título do livro não é alegoria: ele traduz uma estratégia de enunciação. Ao escrever de boca aberta, Anna expõe o som da própria voz, mesmo quando trata de temas como depressão, luto, desassossego ou desconexão. A repetição do canto do sabiá em “teardrop teardrop” (p. 45) ou o ruído dos pernilongos em “coreografia” (p. 8) não são só elementos do cenário — são marcadores sonoros do desconforto e da presença.
O ritmo dos poemas alterna entre o sussurro e a urgência — e há sempre uma música interna, um tipo de notação corporal do texto, como se o poema dançasse entre os parágrafos.
📸 Texto e imagem: uma obra expandida
As fotografias em preto e branco que pontuam o livro reforçam seu caráter sinestésico. Não são ilustrações dos poemas, mas extensões do sensível. A curadoria visual dialoga com o silêncio, o borramento, a introspecção. As imagens aparecem como outro modo de enunciar o que as palavras não capturam — criando, assim, uma obra multimodal, que não se encerra na palavra impressa.
✍️ Considerações finais
Escrever de boca aberta é uma estreia madura, com identidade poética definida, mas permeável à dúvida e à experiência. Anna Davison nos oferece um livro que escuta o mundo com os nervos à flor da pele. A escrita, aqui, é ato de resistência íntima, uma forma de não secar por completo, de “cozinhar como se assim pudesse garantir algum sustento” (p. 65).
Se há dor, há também beleza. Se há secura, há desejo. Se há silêncio, há ruído no fundo — e é nele que Anna canta.
📚 Ficha técnica da obra
- Título: Escrever de boca aberta
- Autora: Anna Davison
- Editora: Toma Aí Um Poema (TAUP)
- Ano: 2024
- Páginas: 90
- ISBN: 978-65-6064-103-7
- Fotografias e revisão: Anna Davison